Hokule’a ― Um barco que é uma tradição restaurada. (Foto: Monte Costa.)
Na primavera de 1976, Mau Piailug se ofereceu para navegar em um barco a vela do Havaí ao Taiti. A expedição, que cobriria 4000 km, era organizada pela Polynesian Voyaging Society — entidade havaiana que estuda técnicas tradicionais de navegação — para verificar se os marinheiros antigos poderiam ter vencido esse trajeto em mar aberto. A embarcação era bela, uma canoa de casco duplo chamada Hokule'a, ou “Estrela de Júbilo” (a estrela Arcturus, para a ciência ocidental). Mas não havia ninguém para comandá-la. Naquela época, Piailug era o único homem que conhecia a antiga arte polinésia de velejar orientando-se pelas estrelas, pela sensação do vento e pela aparência do mar. Então ele se apresentou.
Sendo um habitante da Micronésia, ele não conhecia as águas e os ventos do Taiti, situado remotamente a sudeste, mas tinha uma imagem do arquipélago na cabeça. Ele sabia que se mirasse essa imagem não se perderia. E ele nunca se perdeu. Após percorrer mais de 3000 km, a Hokule'a foi sobrevoada por um bando de pequenas andorinhas-do-mar brancas que rumavam ao ainda invisível Atol de Mataiva, próximo ao Taiti. Piailug sabia que a empreitada estava quase concluída.
Nessa viagem de um mês ele não levava bússola, sextante ou cartas náuticas. Ele não era contra o uso de instrumentos modernos, em princípio. Uma bússola poderia ocasionalmente ter utilidade durante o dia; e ele, ao menos quando já estava em idade avançada, chegou a usar um relógio. Piailug, no entanto, não trabalhava com latitudes, longitudes, ângulos ou cálculos matemáticos de qualquer tipo. Ele caminhava, e navegava, sob uma teia de estrelas em forma de abóbada, que lentamente se movia de leste para oeste, desde a ascensão de cada uma no horizonte até o ponto oposto, em que mergulhava no mar, e conhecia esses pontos tão bem — mais de 100 pelo nome, incluindo as estrelas a eles associadas, com sua cor, luz e hábito — que parecia guardar um cosmos inteiro na cabeça, mantendo-se determinado, atarracado e modesto, no controle desse movimento celestial.
Ao início de cada viagem oceânica, levando água em cabaças e também tubérculos amassados envoltos em folhas, ele apontava a canoa considerando a direção correta do vento e, em seguida, alinhava-a segundo um trajeto que ia de uma estrela ascendente a outra oposta, que se punha no horizonte. Com a estrela de partida às suas costas e a de destino à sua frente, ele mantinha o curso. Durante o dia, guiava-se pelo nascer e pôr do Sol, mas também pela própria água oceânica, a mãe da vida. Conseguia ler a que distância estava de costa, e a direção desta, pela sensação das ondas contra o casco. Podia detectar águas rasas pela cor e ver a luz de lagunas invisíveis refletida na barriga das nuvens. Peixes de sabor mais doce significavam rios ao largo; grupos de aves retornando à noite mostravam-lhe onde a ficava a terra firme.
Começou a aprender tudo isso ainda criança, quando seu avô, também navegador-mestre, sustentava-lhe o corpo em piscinas de maré para ensinar-lhe como as ondas e o vento batiam de modo distinto de um lugar para outro. Mais tarde veio a memorização intensiva da bússola de estrelas, na forma de um círculo de seixos de coral, cada um deles um astro, dispostos na areia circundando um barco de folhas de palmeira. Isso não era diletantismo, mas estudo imprescindível: no minúsculo Atol de Satawal, onde passou a vida, a pesca em alto-mar era necessária à sobrevivência.
Ainda assim, as maneiras antigas iam mudando velozmente. Depois que Piailug, aos 18 anos, foi consagrado palu, ou navegador iniciado, sendo ornado com guirlandas e aspergido com cúrcuma amarela para mostrar o conhecimento que adquirira, nenhum outro ilhéu do Pacífico recebeu tal consagração por 39 anos. Sozinho, ele partia em seu barco levando os encantamentos apropriados para os espíritos do oceano, incluindo “proteção mágica” contra o polvo do mal que vagava furtivamente nas águas entre Pafang e Chuuk. Levava também a sabedoria para nunca se perder — o que ocorreu apenas uma vez, quando naufragou em meio a um tufão e passou sete meses, com sua tripulação, à espera de resgate em uma ilha desabitada.
Como palu, no entanto, ele não podia permitir que suas habilidades morressem com ele. Estava empenhado com o dever de transmiti-las. Daí sua disposição em comandar a Hokule'a. Essa viagem, que provou que a migração dos povos do sul e do oeste para o Havaí não fora um acidente, mas provavelmente um ato deliberado de suprema habilidade marítima e estelar, transformou a autoimagem dos havaianos; e mudou a vida de Piailug. De um momento para outro, passou a ser requisitado como professor. Pacientemente, com ponteiro na mão e sentando-se sobre uma perna dobrada, ele explicava a bússola de estrelas para os novos candidatos a navegador; mas permitia que fizessem anotações. Sabia que eles nunca conseguiriam guardar tudo de cabeça, como ele o fizera.
Muito do que Piailug sabia, é claro, era secreto. O sigilo era sério: quando falava dos espíritos, seu rosto sorridente tornava-se mortalmente sóbrio, e até mesmo alarmado. Para uns poucos alunos, ele transmitia “A fala do mar” e “A fala da luz”. Ao fazer isso, quebrava a regra de que o conhecimento da Micronésia deveria permanecer naquelas ilhas. Parecia-lhe, porém, que os polinésios e micronésios eram um único povo, unido por um vasto oceano que ele, tal como tantos que o precederam, já havia cruzado por milênios em barcos diminutos.
Em 2007 o povo havaiano presenteou-o com uma canoa de casco duplo, a Alingano Maisu. A palavra Maisu significa “fruta-pão madura derrubada da árvore pela tempestade”, que qualquer um pode comer. A fruta-pão era a árvore favorita de Piailug: alta e leve, com veios sinuosos excelentes para a construção naval, látex pegajoso para calafetagem e grandes frutos ricos em amido, que, fermentados, forneciam alimento ideal para uma viagem oceânica. Maisu, porém, também designava a tranquila partilha comunitária de algo bom — semelhante ao conhecimento de como navegar por semanas pelo Pacífico afora, sem mapas, passando sob as estrelas.
FONTE DO TEXTO: Obituário de Pius Mau Piailug — que morreu no dia 12 de julho de 2010, com 78 anos — publicado em The Economist.