Segundo uma hipótese em Leroi-Gourhan, foi quando pôde liberar seus membros anteriores da marcha e, portanto, sua boca da predação, que o homem pôde falar. Acrescento: e beijar. Pois o aparelho fonatório é também o aparelho oscular. Passando à postura ereta, o homem ficou livre para inventar a linguagem e o amor: talvez seja este o nascimento antropológico de uma dupla perversão concomitante: a palavra e o beijo. Assim sendo, quanto mais os homens se liberaram (com a boca) mais falaram e beijaram; e, logicamente, quando, pelo progresso, os homens se livrarem de toda tarefa manual, não farão mais do que discorrer e beijar!
Imaginemos, para essa dupla função localizada num mesmo lugar, uma transgressão única, que nasceria de um uso simultâneo da palavra e do beijo: falar beijando, beijar falando. É preciso crer que essa volúpia existe, já que os amantes não cessam de “beber as palavras dos lábios amados”. O que eles saboreiam então, na luta amorosa, é o jogo do sentido que desabrocha e se interrompe: a função que se perturba: em uma só palavra: o corpo tartamudeado.
FONTE DO TEXTO:
Roland Barthes. 2003. Roland Barthes por Roland Barthes. Tradução de Leyla Perrone-Moisés. São Paulo, Estação Liberdade. Página 158.
FONTE DA IMAGEM:
Foto de Robert Doisneau (1912-1994) – “O Beijo do Hotel de Ville” -, tirada em Paris em 1950.