sábado, 16 de outubro de 2010

Viver não é preciso...


Em “Navegar é Preciso”, Fernando Pessoa (foto) registrou:

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:
“Navegar é preciso; viver não é preciso”.

Quero para mim o espírito [d]esta frase,
transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.
Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.
Só quero torná-la grande,
ainda que para isso tenha de ser o meu corpo (e a minha alma) a lenha desse fogo.

Só quero torná-la de toda a humanidade;
ainda que para isso tenha de a perder como minha.
Cada vez mais assim penso.

Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue
o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir
para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

Afora a beleza do poema, nunca entendi de que modo uma frase como essa ― Navegar é preciso; viver não é preciso ― poderia ter se originado de navegadores, com a palavra “preciso” tendo o significado de “necessário”. Seriam eles tão alucinados por navegar, “viver no mar”, que a própria vida não teria mais sentido, nem necessidade, sem uma embarcação sob os pés? Logo no mar, onde as lições de sobrevivência se acumulam a cada momento? Justo os navegadores, que são atores e espectadores da força da vida e da beleza do mar à mercê de elementos que se renovam a cada dia? Sempre acreditei que Fernando Pessoa transformara o significado de “preciso”, “exato”, em “necessário” por simples conveniência poética. Afinal, navegar sempre exigiu habilidades especiais, técnica, principalmente entre os navegadores da antiguidade, cuja tecnologia parece tosca aos olhos atuais. Para navegar era imprescindível o mais absoluto rigor, fosse para observar e seguir estrelas e constelações ou para manipular sextantes e astrolábios. Enfim, navegar era um exercício de precisão, sem a qual não haveria navegação, mas sim naufrágio! NAVEGAR É PRECISO! Já viver... Ah! Para viver não havia e ainda não há regras, tampouco rigor ou técnicas. A vida nos surpreende. VIVER NÃO É PRECISO!

E curiosamente, por mero acaso (em um daqueles banais eventos da imprecisão da vida), descobri em um site de domínio público a possível origem da frase apontada por Fernando Pessoa como sendo dos navegadores:

“Navigare necesse; vivere non est necesse” ― do latim, frase que Pompeu, general romano (106-48 a.C.), ditou aos marinheiros amedrontados que se recusavam a viajar para a guerra.

Enfim, seja ou não seja esta a real autoria da sentença, resta a curiosidade de conhecer o singular incentivo do poderoso general romano, “senhor” das vidas que comandava. Quantos séculos se passaram... E muitos poderosos ainda decidem (ou tentam decidir) qual será o destino e a “necessidade” das vidas alheias.

Sem guerras abertamente declaradas, o desafio da atualidade é viver sem fazer concessões aos caprichos de quem exerce o poder. Viver simplesmente. Pensar, decidir, sem manuais que imponham rotas de navegação e destinos predeterminados.
 

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