Manchada pelo tempo, com uma rosa vermelha impressa logo acima dos nomes de vinte e duas mulheres, a flâmula registra local e data: “Dourados, 27-8-66” . Exatamente isso. No último dia 27 de agosto passaram-se quarenta e cinco anos desde o 1.° Baile de Debutantes da cidade. E meu nome figurava entre os das vinte e duas mulheres. Mulheres não – meninas, quase moças, adolescentes de catorze a quinze tenros anos.
As demais debutantes eram: Acir Kleim, Aidê Casaro, Angela Maria Cerzósimo, Bárbara Lupinetti, Cleonir Dauzaker, Dulce Lopes Bittencourt, Elisa Penzo, Élcia Mori, Estela Mary Billerbeck, Gecilda Brandão Dourado, Georgette Mello, Jane Antacle, Maria Auxiliadora Galvão, Marly Ferreira Bittencourt, Nélida Capilé, Nélida Milan, Odete Fernandez, Paula da Silva, Sandra Maria Lourenço, Solange Maria Lourenço e Teodorica Melo. Nenhum sobrenome estava impresso na flâmula e, infelizmente, eu não me lembrava de todos eles, apesar do rosto de cada uma estar nítido em minha memória. Fui salva por Nélida Capilé que (embora tenha perdido sua flâmula) guardou um papel amassado com o nome, sobrenome e a assinatura de todas.
Muitas delas eram minhas amigas; outras não, apesar da intensa convivência durante as semanas que precederam o baile. Convivência com local e hora marcados. Usando de rigor, Ymera Senatore Fedrizzi nos treinava, dia após dia: como andar, como sorrir, como desfilar no salão. Como era cansativo! Os ensaios eram ora no Clube Social, ora no Grande Hotel – de propriedade do casal Ymera e Vittorio Fedrizzi. O hotel, que ficava próximo ao clube, era então um dos cartões postais da cidade.
Ymera era uma mulher elegantíssima e bela, ex-miss Cáceres (MT), que tinha o prazer (e a enorme responsabilidade) de organizar eventos sociais em Dourados, inclusive os então afamados concursos de misses. Além de, por décadas, escrever a coluna social do jornal O Progresso (que assinava como Aremy), Ymera treinava – arduamente – mocinhas sonhadoras que almejavam um dia ser misses. Uma pioneira em sua área. Anos após residir em Dourados, mudou-se para Campo Grande, onde foi uma das fundadoras do Círculo Italiano Guglielmo Marconi e a primeira mulher a exercer o cargo de relações públicas da Assembléia Legislativa.
Adriana Fedrizzi Marques, filha de Vittorio e Ymera, após ler uma primeira versão desta crônica, publicada no jornal O Progresso, me enviou um e-mail: “Se vocês foram da primeira turma de debutantes, eu fui da última, 15 anos depois. Durante 15 anos consecutivos ela realizou este baile. Acho que me esperou para encerrar esta jornada. Quantas de nós, as ‘moças’ da cidade, têm essa lembrança?”.
1966... Lembro-me claramente de Ymera nos ensaios, com seu bastão, marcando a cadência no piso, acertando o tempo e o ritmo dos passos das debutantes. Meu primeiro baile... Parece que foi há séculos. Se você nunca foi a um deles, vou descrevê-los. Se você os conhece, confira se fui fiel.
Debutar era passar por uma espécie de ritual de iniciação que teve seu auge nos anos 60 e 70. Os Bailes de Debutantes eram as (um tanto quanto bizarras) celebrações da estreia das meninas-moças na vida social. Uma a uma, elas desfilavam pelo salão sob a aura da voz do galante locutor de uma rádio local. (Em meu baile, Ymera Fedrizzi se apossou dessa honra.) E o imenso salão do clube ficava pequeno perante o texto a ser lido, anunciando nome, sobrenome, filiação e os intermináveis predicados da debutante: “estuda no colégio Imaculada Conceição”, “exímia nadadora”, “tem aulas de piano com a Professora Berenice, pretende ser concertista e apresentará ‘Claire de Lune’, de Claude Debussy, na próxima audição do Conservatório Villa-Lobos”, “gosta de literatura”, “leu recentemente, e recomenda, ‘Fernão Capelo Gaivota’, de Richard Bach”, “já estudou canto orfeônico com Dona Hilda Bergo Duarte”, “tem aulas de declamação com Margarida Tavares”, “adora ‘Romeu e Julieta’, filme de Franco Zeffirelli que já assistiu oito vezes”, “estuda flamenco e ballet moderno”, “tem como hobby bordar toalhas de banquete em ponto-cruz”...
Após as devidas e infindáveis apresentações, as debutantes eram conduzidas por seus pais e rodopiavam seus longos vestidos bordados, ao som de valsas de Strauss majestosamente executadas por uma orquestra. E em meu baile, dancei e dancei, feliz como a menina que eu era, acalentada pela música da Orquestra Marajoara.
Com o passar das décadas, os Bailes de Debutantes começaram a contratar “príncipes encantados”: sempre um ator televisivo (preferencialmente que tivesse atuado em uma novela de sucesso) que desfilava com cada debutante e revezava-se pelo salão, dançando valsas e mais valsas, suscitando suspiros incontroláveis.
O fato é que, não importa em que década (e em que século) esses primeiros bailes tenham sido realizados, todos eles foram noites inesquecíveis, com direito a pés doloridos pelos novos sapatos de salto alto, cabeças tontas, ousados beijos roubados e uma certeza de conto de fadas: não havia a menor possibilidade de não ser “feliz para sempre”.
Ainda hoje acredito que fazer quinze anos tem uma forte carga simbólica, não importa como e onde eles sejam comemorados. Ao menos para minha geração, apesar da verdadeira tortura dos ensaios do Baile de Debutantes, a vivência era mágica: uma idade de transformações, como se num estalar de dedos se descortinasse uma vida em que tudo era possível e acessível. Bastava sonhar de olhos abertos.
Como era estimulante ter a vida toda pela frente!