domingo, 23 de outubro de 2011

Flores simples, flores ímpares

A primavera me provoca um certo tipo de vertigem, como se me deixasse inebriada com aromas e pólen. Ela inspira os poetas a escrever sobre flores: dúzias e dúzias de páginas, livros aos ramalhetes. Aos apaixonados, para que presenteiem com flores: rosas em botão com um cartão perfumado, amores-agarradinhos, amores-em-penca. E aos músicos, para comporem com flores, por vezes com letras melodramáticas: “Meu primeiro amor foi como uma flor que desabrochou e logo morreu”; por vezes derretidas e rebuscadas: “Tu és divina e graciosa, estátua majestosa do amor... formada com o ardor da alma da mais linda flor, de mais ativo olor, que na vida é a preferida pelo beija-flor”. São flores. Flores aos borbotões. Cachos de flores: “Fonte de mel, nos olhos de gueixa... Choque entre o azul e o cacho de acácias, luz das acácias, você é mãe do sol. Linda.”

Poetas, romancistas, escritores, cantores, compositores, profissionais ou amadores, apaixonados, moldam suas musas e seus amores às flores. Como se existisse uma imagem imutável, um inconsciente coletivo que permeasse qualquer pensamento e ação em uma associação obrigatória entre flores e a mulher amada. Ambas femininas. Ambas inseparáveis.

Tal associação é secular e evoluiu através do tempo. Mulheres e flores se conhecem há milênios, são cúmplices e guardiãs de segredos imemoráveis. Compartilham a química da geração da vida. Ambas desabrocham e exalam néctar. Ambas fertilizam seus óvulos e frutificam.

Na caverna ancestral, no começo dos tempos, uma mulher faminta mastigou flores. Entorpecida, notou que a perna ferida não doía mais. E o conhecimento empírico frutificou. A mulher buscou mais ervas, flores e botões. Separou, triturou, manipulou, desvendando os segredos da natureza. Aprendeu sobre o tempo de colher, o tempo de plantar, o tempo de curar. Suas curas geraram mais conhecimento. E as sacerdotisas pagãs floresceram e frutificaram. Magias. Rituais. Flores de mandrágora, poções e poder.

E esse poder as levou da exaltação dos altares pagãos às fogueiras da Inquisição. A estupidez da ignorância ceifa a vida daquilo que não compreende, daquilo que não domina, daquilo que não professa a mesma fé. Mulheres simples que conheciam o poder de algumas ervas e flores dos quintais. Mulheres tristes que, adoentadas, eram tratadas como possuídas por forças malignas. Era mais fácil romper o elo mais fraco da corrente: queimar aquele ser estranho que sangrava todo mês e nem assim morria. Soturnos tempos. Mulheres e flores murcharam. Esconderam-se. Foram longos e tristes séculos com emplastos, chás e poções clandestinas – e marcas profundas na alma feminina, de sacerdotisa a bruxa.

Mas chegamos ao século XXI. A bruxa chutou o caldeirão e a sacerdotisa desceu do altar. Adoro a evolução! Podemos escolher: passear de dona de casa, madame, bruxa, fada ou sacerdotisa, a nosso bel-prazer. Podemos exalar néctar livremente; quem não goste, que saia de perto. Podemos prender um cacho de acácias nos cabelos ou vestir um longo cor-de-rosa. É nosso direito. É nosso deleite. É nosso vexame.

As flores fazem parte de nosso ambiente natural e voltamos a conviver com elas harmoniosamente, sem medo das fogueiras. A convivência vai além das poções, chás e unguentos. O cultivo das flores é prazeroso. Vicejamos com e como elas. E bem cuidadas, regadas com carinho, podadas quando necessário, adubadas com a energia da família e dos amigos, florescemos por anos afora, belas e plenas como flores simples, flores ímpares.

 

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