terça-feira, 3 de janeiro de 2012

Se essas ruas fossem minhas...


Você percebe claramente que está ficando velho, mesmo, quando muitos nomes de ruas e avenidas são de pessoas que conviveram com você. Isso assusta um pouco.

Não sei se para me acalmar, ou para ficar mais preocupada, fui dar uma espiada nas ruas de minha cidade natal, Dourados, Mato Grosso do Sul, para ver quais eu conhecia. E eram muitas... Comecei a escrever sobre algumas e decidi não me preocupar com as razões que levaram à homenagem. Afinal, ninguém é nome de rua sem uma boa justificativa. Mas as “minhas” ruas estão muito além das causas que as levaram a ter determinado nome. As “minhas” ruas são aquelas que estão vivas nas memórias de meu afeto.

Rua Antonio Alves Rocha — Tio “Nhonhô”, o dono da Farmácia Popular, marido da tia Joaninha. Eles moravam na Marcelino Pires, em um dos primeiros sobrados da cidade, em cima da farmácia. Lembro-me das festas que lá faziam, com refrigerante gelado(!), e de como o vento soprava livre e fresco no sobrado, dando trégua ao calor. Tio Nhonhô, sempre elegante, se esmerava como farmacêutico no atendimento atrás do balcão de madeira maciça.

Rua Antonio de Carvalho — “Carvalhinho”, meu avô materno. Um nordestino baixinho e gozador, exímio mecânico de máquinas e motores que fez parte da Comissão Rondon, trabalhando na instalação das linhas telegráficas em Mato Grosso, e que por aqui ficou ao decidir casar-se com Gasparina Mattos (minha avó materna). Era político, do tipo pacificador. Tinha jogo de cintura, até para driblar a vovó que odiava suas noitadas de jogo de baralho. Foi um de meus instrutores de canastra, juntamente com o tio Miguel. (Eu devia ter levado essas aulas mais a sério.)

Rua Maneco de Melo — O padrinho de meu irmão. O Maneco nos visitava toda semana, religiosamente, com sua esposa Zizi. Chegavam sempre à tardezinha, na “boca da noite”, como diziam. E passavam horas tomando mate com minha avó Gasparina, proseando sobre o tempo, a falta ou a abundância da chuva, quem tinha morrido por aqueles dias, como a cidade estava crescendo, as últimas dos filhos e dos netos... até que ele começa a cochilar na cadeira. Era a hora das despedidas. Até a semana que vem!

Rua Izzat Bussuan — “Seu” Izzat! O pai de meus amigos Luiz Antonio e William. Sempre atencioso, com sua esposa Dona Afife, esse libanês culto e elegante era um anfitrião adorável. Como se comia bem em sua casa! E como era divertido vê-lo falar, com seu forte sotaque, jamais perdido em quase cinquenta anos de Brasil.

Rua Geni Ferreira Milan — Anos atrás escrevi uma crônica sobre “Dona Geni”, publicada em meu primeiro livro, onde comentei que ela era uma mulher plena, totalmente diferente de todas as outras mulheres da cidade, quando o “diferente” era (e ainda é) um assunto instigante e inesgotável. E assim, a cada ato ou fala dela (reais ou imaginários), o universo feminino da cidade era abalado e a ordem subvertida. Até hoje sou grata à Geni. Com ela aprendi que ser ousada, verdadeira e rebelde era muito, muito divertido. Ela foi minha primeira feminista, a mais autêntica das que conheci. (Geni morreu assassinada, em um dia 3 de janeiro, meu aniversário.)

Av. José Roberto Teixeira — Meu amigo. Um cara do tipo calado como muitos adolescentes. Batia um bolão. Morreu na rua que leva seu nome em um triste acidente, ao voltar de uma festa do Clube Indaiá.

Av. Weimar Gonçalves Torres — Tio Weimar! Casado com a irmã de meu pai, tia Adiles. Político, poeta, fundador do jornal “O Progresso”, era um homem ocupadíssimo, que estava sempre viajando. Tivemos pouco contato. Mas ele foi o orador que homenageou as primeiras debutantes da cidade. E, é claro, eu era uma das vinte e duas adolescentes que dançaram suas valsas no Clube Social de Dourados no dia 27 de agosto de 1966.

Rua Miguel Ângelo do Amaral — Tio Miguel, irmão de meu pai, marido da tia Dulce. Passei quase toda a minha infância na casa dele, brincando com seus filhos. Um grande pescador e, como tal, um divertido contador de histórias. Meu parceiro de canastra paraguaia — um dos jogos de baralho mais difíceis que já vi —, me ensinou a jogar. Ele tinha uma expressão peculiar para ressaltar sua habilidade na canastra: “Eu jogo isso por música!”. E jogava mesmo, chegando a memorizar quais cartas os adversários, e o parceiro, tinham em mãos... e quais tinham descartado. Parceria com tio Miguel era sinônimo de vitória.

Rua Docelina Mattos Freitas — Tia “Doce”. Uma das pessoas mais delicadas que já conheci. E como me tratava bem, me agradava, mimava... Contava histórias dos parentes, tomando mate embaixo de uma ramada, ao lado da caixa-d’água que vez por outra deixava respingar água fresca. Sempre me presenteava com uma barra de geleia de mocotó autêntica, feita com os tendões de patas de boi que ficavam horas e horas em um grande tacho de cobre sobre o fogão a lenha. E aqueles mocotós rendiam tão pouco doce...

Rua Teodoro Capilé — Também já escrevi uma crônica sobre ele. O grande seresteiro de minha adolescência, parceiro de Renê Miguel. Acredito que os dois tocam juntos, ainda hoje, em algum lugar conhecido por pessoas iluminadas. Teodoro me marcou com sua amizade, seu sorriso largo e sua alma boêmia, que soltava a voz morna de acordo com a entonação desejada para destacar a letra da guarânia. Até hoje não posso ouvir Mercedita, Índia, Lejanía, Recuerdos de Ypacaray e tampouco Saudades, sem me lembrar dele.

Rua Dr. Nelson de Araújo — Ah! Essa rua é como se fosse minha... Não só porque morei nela por anos a fio. Eu o chamava de “Vovô Nelson” e ele nem sequer era meu parente. Mas foi ele mesmo que me contou que, quando cheguei ao mundo, foi o primeiro a me olhar, tocar e sorrir, ao fazer o parto de minha mãe. E isso bastava. Ele exigia que eu o chamasse de vovô. Entrou em minha vida e nunca mais saiu. Tomava café da manhã todos os dias em minha casa e era um grande amigo de minha família e meu. Apesar da grande diferença de idade, conversávamos muito, como de igual para igual. Um homem sábio que sabia escutar e falar no mesmo nível do interlocutor. Ele faleceu em junho de 1966, um mês antes de completar 61 anos. Chorei muito. Eu tinha então 14 anos e senti muito sua falta, tanto quanto sinto ainda hoje, quando acabo de completar 60 anos.

Estou ficando velha, com certeza. Mas, em vez de me preocupar com o tempo que me envelhece, vou gastá-lo em caminhadas pelas “minhas” ruas, vivendo minha própria história.


[Hoje é dia 8 de janeiro de 2012 e mudei a foto do post. A foto atual, de uma rua de Dourados com a calçada coberta por flores de ipê rosa, é a cara de uma das minhas ruas. A foto foi clipada do facebook da prima Jussimara Mattos Souza. Obrigada, Jussi!]

 

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