Outro dia tinha uma
menina batendo na cara de uma professora na TV. Era um vídeo ruim, filmado por
um celular, numa sala de aula. Era um flagrante de falta de educação, de
arrogância, da formação de uma delinquente. Não sei o que era aquilo. Mas eu
não acho que fosse novidade alguma. Lembro de estagiar em uma escola privada da
moda, em Belo Horizonte ,
e de ver um garoto atirar um sapato no professor, quando este virou as costas
para sair da sala. Não acertou. Se não acertou, ninguém fez nada. O ato não se
consumou, não é mesmo? Mas aí isso era todo dia. E todo estudante deve ter
essas vontades um dia. Raiva da prova, raiva da nota, raiva das proibições.
Outro dia, eu estava
almoçando e assistindo a um desses programas sensacionalistas regionais (cuja
fórmula é copiada em todos os estados). E, de repente, uma menina bateu na
professora, dentro da sala de aula. Apuraram lá que foi por causa de um bilhete
que a professora confiscou. Mas a aluninha não pode ser contrariada, certamente
se acha poderosa demais. Quem é aquela professora chulé (que só deu pra ser
professora na vida) para proibir alguma coisa? Então ela vai lá e dá um tapa na
docente. E não há reação. A professora não bate de volta. A professora se contém,
claro, porque o sangue deve ter fervido.
Já levou um tapa da
cara? Ferve tudo, esquenta a ossatura. Dá uma espécie de dormência no rosto
inteiro, uma vergonha enorme, uma vontade imensa de reagir. Ninguém gosta de
tapa na cara. Levei tapa na cara, sim, mas do meu pai. Naquela época, isso era
um negócio assim meio comum. Pais e filhos eram uma espécie de antagonistas
naturais. Não era como hoje, que você negocia, conversa e resolve como se a
relação fosse simétrica.
Ah, me desculpem aí os
empolgados de plantão, mas não é. Essa relação não é simétrica. Pais são pais.
Filhos são filhos. E eu não digo que não possam aprender uns com os outros. É
claro que podem. No entanto, uns são autoridades, outros, não. Já dizia alguém
que li por aí: estamos vivendo o filharcado.
Eu fiquei estarrecida
com aquela adolescente doentiamente arrogante batendo na professora. Eu fiquei
impressionada com a cena e com a facilidade com que a coisa ocorreu. Fiquei
perplexa com isso. Mereceu “mídia” e tudo, pois é. Não sei o que mais merecerá.
A garota ficou sob os cuidados do conselho tutelar ou sei lá eu. Mas e a
professora? Aos cuidados de quem?
O Estado sai de tudo o
que ele pode. Saiu da educação e da saúde há tempos. Saiu da segurança pública.
Retirou-se de tudo quanto pode. E vai se retirar mais. Vez ou outra me pego
pagando em dobro qualquer coisa: meu oftalmologista ou a escola do meu filho.
Bem, mas fico pensando: há coisas que se ensina a uma criança dentro de casa. O
respeito aos outros, por exemplo. E o respeito ao professor, então.
Aquela menina me fez
sentir uma espécie de ódio generalizado. Como assim? Eu me imaginei me
levantando para estapear meu professor, em qualquer série que fosse. Também não
acho que a assimetria nessa relação deva abrir espaços para o contrário. Levei
reguada na cabeça de professora irritada. Não admiro os tempos da palmatória e
da decoreba. Nada disso. Mas não entendo que a vara se tenha curvado para o
lado tão oposto.
Como são difíceis
estas relações. Se a guria se atreve a bater na professora, fico me
perguntando, o que faz com os pais? Os tem? Bate neles? E com os colegas? E se
fosse um professor? O que aconteceria naquela sala de aula? O que faz um
professor?
Meu colega Edvaldo
Couto dizia, no Twitter, que se sente meio irritado com essa história de que as
relações na escola, entre alunos e professores, devam se dar na base da
amizade, do afeto e discursos semelhantes. Dizia Edvaldo, em menos de 140
caracteres, que a relação docente/discente se funda no conhecimento. Demos o
aval eu e outros participantes daquela rede. Mas como chegar a essa conclusão?
Como fundar relações no conhecimento se ele está relegado ao segundo ou
terceiro ou quarto plano?
Nunca me disseram
direito em que consiste a profissão de professora. Fiz lá aquelas disciplinas
na Faculdade de Educação, inclusive Didática e Práticas de Ensino. Nunca me
descreveram direitinho o que eu deveria fazer. Pus os pés na escola de verdade,
um dia, e levei o mesmo susto que sei que muitos de meus colegas levaram. Essa
é uma fase crítica, em que muita gente se decide por mudar de profissão. Sim,
era um choque chegar à escola real, em funcionamento. Talvez
tenha sido assim em qualquer época, mas sabe-se que as coisas mudaram, e mesmo
para melhor, em muitos aspectos. Mas as coisas também pioraram, em outros.
O poder da juventude,
o acesso à informação e às tecnologias, a agilidade, uma espécie de
inteligência coletiva, o culto ao jovem como se ele fosse a referência para
tudo... inclusive o culto estético. Tudo isso me dá uma imensa preguiça. A
arrogância que isso causa não tem precedentes. Estapear uma professora é um
fenômeno contemporâneo. Bom, vamos lembrar: alunos sempre ameaçaram
professores. Muito antes do computador, lembro-me dos carros arranhados no
pátio e dos alunos que falavam em esvaziar pneus. Sim, o professor sempre foi
alvo de amor e ódio. O professor não foi sempre a figura amada, mas também não
aquela mais digna de piedade. O professor já foi respeitado e já, inclusive,
teve salário digno, mesmo trabalhando em escolas públicas.
Mas esse tempo do
prestígio foi apagado. Completamente, penso. A representação que se faz do
docente hoje é outra, bem outra. Lastima-se abertamente o calouro aprovado em
curso de licenciatura no vestibular. Lamenta-se a carreira ingrata daquele que
lecionará, ao menos na escola básica. A “elite” do professorado, se der conta,
alcançará o ensino superior, onde as condições parecem, friso que apenas se
parecem, um tantinho melhores.
A garota bateu na
professora. Eu senti aqueles dedos impertinentes na minha cara. Mas a maioria
das pessoas não se preocupará com isso. Talvez por um segundo, ali, enquanto
almoçam pensando nas cenas do Big Brother. É assim. Peso quase algum para as
questões do professor.
Um professor deveria,
em primeiro lugar, estudar. Deveria ser um estudioso de seu tema. Um leitor
voraz de sua bibliografia (que não para de crescer). Um escritor contumaz de
seus textos específicos. Um professor deveria preparar suas aulas, pensar no
que dizer, saber como organizar o conhecimento e a informação. Um professor
deveria dar suas aulas, ler e avaliar os trabalhos dos estudantes, orientar
pessoas. Um professor deveria fazer tudo isso em doses cabíveis. E, ao final do
mês, deveria receber por seu trabalho essencial um salário que comprasse suas boas
férias, sua viagem de lazer, os uniformes de seus filhos e as despesas de sua
residência digna.
Mas isso está muito
além dos sonhos. Isso é piada diante do que realmente ocorre à maioria dos
colegas. Além de não comprar livros e de não ter tempo de preparar suas aulas,
o professor precisa ainda lidar com um calendário de esforços infinitos.
Aqueles que pretendem produzir e se preparar para os cursos que darão gastam
suas férias e seu lazer cumprindo o que não consta de seus horários de
trabalho. E lastimam a indecência de suas contas bancárias e talvez se
arrependam de suas escolhas no vestibular. Bem, aquelas pessoas jocosas
tornam-se profetas.
As meninas que batem
em professoras, assim como os meninos, proliferam por aí e pensam ter razão.
Aliás, elas têm certeza de sua razão. Elas serão qualquer coisa, menos
professoras. Isso é coisa de quem não teve boas oportunidades na vida, não é
mesmo?
Ana Elisa Ribeiro – 23/março/2012
[Crônica clipada do Digestivo Cultural]
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Sobre a autora: Ana Elisa Ribeiro é doutora em Linguística Aplicada
(Linguagem e tecnologia) e mestre em Estudos Linguísticos
(Cognição, linguagem e cultura) pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG), onde também se bacharelou e licenciou em Letras/Português. É
pós-doutora em Comunicação pela PUC-Minas (2009-2010), com pesquisa sobre
layout e leitura. É professora do Centro Federal de Educação Tecnológica de
Minas Gerais (CEFET-MG), onde ministra disciplinas na graduação e no mestrado
em Estudos de Linguagens, além de ser editora-chefe da revista Educação &
Tecnologia e coordenadora geral de divulgação científica e tecnológica. Presta
assessoria na área de edição, tendo atuado em diversas casas editoriais
mineiras. Como pesquisadora, trabalha na interface entre linguística,
comunicação, design e educação. Tem diversos textos publicados em livros e
revistas, especialmente com relatos de pesquisa em temas como tecnologias e
educação; história das tecnologias da escrita e da leitura; formação e atuação
de editores e revisores; multimodalidade e leitura; design, usabilidade e
leitura; letramentos e novas tecnologias. Também se dedica à produção cultural
como cronista do Digestivo Cultural (São Paulo) desde 2003 e do jornal Letras
(Belo Horizonte) desde 2007. É autora de livros de poesia e de publicações
literárias coletivas no Brasil e em Portugal.
[Fonte do texto sobre a autora:
Currículo Lattes de Ana Elisa Ribeiro.]