Ela foi totalmente serrada. Não sobrou um único pedaço
visível. Era uma bela e frondosa jabuticabeira que florescia dando frutos doces
como o mel e que um dia, já velha, foi substituída por um muro. Algumas
fileiras de tijolos, cimento, reboco... Um muro frio e seco.
Argamassa no lugar de polpas saborosas e suculentas.
Que troca! Mas as linhas retas de demarcação de propriedade eram mais
importantes que uma tortuosa senhora jabuticabeira. E ela, sem conhecer os
limites dos homens, vicejara exatamente na divisa de propriedades vizinhas.
Pagou caro: foi ceifada, sem piedade.
Os anos se passaram e as posses mudaram de mãos, de
escrituras, de controle. Os meninos que haviam se fartado de comer jabuticabas,
cresceram, tiveram filhos, tornaram-se respeitáveis proprietários. E o muro
envelheceu.
No mesmo lote sobraram duas outras jabuticabeiras que,
ao acaso, haviam nascido longe dos limites murados. Estas foram poupadas. E
cresceram. Mas seus frutos não eram bons, não tinham sabor. Estavam sempre
bichados e pareciam cheios de areia. Apesar de produzirem jabuticabas
imprestáveis, as árvores, viçosas, foram mantidas no jardim do novo prédio.
Eram esteticamente interessantes, convenientemente decorativas, e isso bastava.
Ninguém se incomodava com seus frutos intragáveis. Ninguém mais comia
jabuticaba no pé.
As jabuticabeiras são árvores leves que adoram
balançar seus ramos finos, rendados por inúmeras folhas miúdas. São seres alegres
e dançantes. Não perdem um só acorde do vento e rapidamente sacodem suas
cabeleiras verdes.
Muito práticas, desenvolveram flores e frutos que
vicejam firmemente agarrados a seus troncos. Evolutivamente, se adaptaram para
serem dançarinas sem derrubar nenhuma flor. Bailam e saracoteiam seus finos braços
e a densa copa sem perder um único fruto. São sábias, pois do jeito que
balançam e sacodem, se fossem mangueiras derrubariam todas as mangas ainda
verdes, filhotinhas. Mas são jabuticabeiras: membros da “minha” família
botânica, a das Mirtáceas, que inclui as pitangueiras. (Saiba que eu e outras Eugênias somos seus parentes próximos.
Tenho orgulho em tê-las como primas!)
Um dia, sem alarde, aquele velho muro começou a
descascar. Foi rebocado, retocado, pintado. Não se passou uma semana e já
estava pedindo reparos novamente. Vieram o síndico e o jardineiro, olharam,
mexeram, conversaram e decretaram: “Trabalho malfeito!”.
O pedreiro foi chamado e obrigado a repetir a obra,
apesar de ter posto a culpa no cimento de má qualidade que o síndico havia comprado.
A situação se repetiu. Veio o engenheiro e examinou: não era umidade nem
infiltração. E o muro descascava novamente, sem ninguém saber por quê.
Fizeram uma reunião do condomínio e o assunto
principal foi o muro. Resolveram cobri-lo com hera. Mas a trepadeira não
vingou. Nos locais em que as gavinhas aderiam, o reboco se desprendia. Por puro
cansaço, o muro caiu no esquecimento. Todos passaram a evitar aquela parte do
jardim.
E chegou a Páscoa. Na busca por ovos de chocolate, as
crianças vasculhavam todo o pátio do prédio. Mas não encontraram seus presentes
comprados pelos pais. Encontraram jabuticabas, grandes e suculentas, saborosas,
sem bichos e sem gosto de areia. Eram centenas delas, aderidas a uma jovem e
forte jabuticabeira que arrebentara o muro e renascera.
Há pessoas que são como essa jabuticabeira: têm a
capacidade de romper couraças e renascer. E quando estão presentes influenciam
as demais pessoas com sua doçura e sua força. E eu, que hoje sou um rebroto de
pitanga, quero ser uma árvore quando crescer. Não sei se darei bons frutos, mas
garanto que vou dançar sempre que puder.