Lendo
hoje o Caderno da Cidadania do Observatório
da Imprensa, encontrei um texto imperdível, escrito por Muniz Sodré,
jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, que esclarece como funcionam os mecanismos da corrupção e da
impunidade no serviço público federal brasileiro. Eu, se fosse você, lia agora:
SOBRE A CORRUPÇÃO
Um dado muito
revelador
Por
Muniz Sodré em 15/05/2012 na edição 694 do Observatório
da Imprensa:
Em meio ao tsunami de
escândalos em torno da corrupção pública e privada, há um dado revelador nunca
assinalado pela mídia nacional: é impossível roubar no serviço público federal
brasileiro. Esta afirmação, claro, está sujeita ao imediato riso de escárnio
por parte de quem a lê ou escuta. Afinal, há toda a evidência dos fatos. Por
isso, vale precisar: é impossível roubar sem que se saiba. A impunidade é outro
lado da questão.
O que estamos querendo
afirmar aqui, em primeiro lugar, é a capacidade técnico-formal do Estado para
proteger-se. Quando se trata de desmontar quadrilhas, a Polícia Federal tem-se
revelado bastante eficiente. Quando é o caso de malfeito administrativo,
qualquer gestor público (federal) pode testemunhar sobre a meticulosidade com
que a Controladoria Geral da União (a CGU, organismo relativamente recente)
acompanha a sua gestão e como, no final de cada ano, o Tribunal de Contas da
União (o TCU) confere com pente fino a prestação de contas. Trata-se de
mecanismos com poderosa assessoria técnica.
Em termos subjetivos, tudo
isso é um tormento para o gestor honesto que, a cada licitação ou a cada
despesa orçamentária, sente a presença de uma verdadeira espada de Dâmocles
sobre sua cabeça. Uma aquisição feita inadvertidamente a maior, um erro
cometido por um subordinado, qualquer falha pode ter consequências funestas. O
erro e a desonestidade costumam ser avaliados como uma mesma coisa.
Locomotiva de papel
Ora, poderá pensar um
observador externo, é animador que o sistema possa ser imune à prevaricação. E
assim retornamos, para melhor esclarecimento, à afirmação inicial quanto à
impossibilidade de roubo sem que se saiba. De fato, sempre se acaba
identificando o malfeito e o malfeitor. Se este último escapa, o motivo é
político, ou melhor, político-patrimonialista, pois a impunidade é a
privilegiada condição costumeira do malfeitor pertencente ao espectro do
estamento patrimonialista que se reproduz no poder desde a fundação do país.
Donde, o consenso quanto ao fato de que o dinheiro público expropriado, até
mesmo nos casos de atuação da Polícia Federal, dificilmente é restituído de
modo integral ao erário do Estado.
É provável, assim, que o
fato da impunidade leve o dito observador externo a pensar na coexistência da
boa técnica do sistema de controle com absurdos, digamos, existenciais. Mas há
outros. Vamos ao exemplo de um caso real, aqui ficcionalizado para evitar
constrangimentos.
O gestor de um órgão
educacional ou cultural coloca em seu programa de metas algo como a elaboração
de indicadores capazes de avaliar a influência
do pigmento melânico na coloração do olho do sagui. Este tópico, abstruso,
poderia fazer sentido no campo da zoologia ou da biologia, mas é evidentemente
absurdo na esfera de uma gestão educacional ou cultural.
No episódio real, o tópico
não era tão caricatural, mas era contextualmente absurdo. Tratava-se da
elaboração de indicadores avaliativos que não existiam, nem existem na prática
da produção cultural. Talvez devessem mesmo existir, mas em termos concretos
não passavam da intenção impraticável de um administrador, que terminaria
deixando o cargo.
Diante da meta
inexequível, o seu substituto simplesmente a ignora. Mas anos depois tem a
desagradável surpresa de ser notificado por um daqueles órgãos de controle
sobre a falta de cumprimento daquele item. Faz ver então que aquilo não tinha
nenhum sentido, sem encontrar escuta razoável: para a burocracia de controle,
se estava programado, deveria ter sido realizado, não importava o que fosse. E
como nenhuma resposta parecia satisfatória, aplica-se uma multa pesada ao
gestor.
Para compreender o que se
segue, é preciso levar em conta que a Brasília oficial é um império assentado
em papel, isto é, em matéria burocrática, que reproduz documento como vírus se
reproduz em computador.
O poder jurídico-burocrático constrói uma locomotiva de
papel, capaz de atropelar até mesmo quem anda nos trilhos.
Fora da bitola
A depender do estado de
humor do relator de um papel, um arrazoado pode ou não ser aceito. Não é a
razão do argumento que se põe em causa, mas o momento subjetivo, a boa ou má
vontade do relator. Este, como numa corte imperial, pode simplesmente decidir
que deseja aplicar a multa, e pronto. “Fi-lo porque qui-lo”, diria aquele
governante de não saudosa memória. E para fins de efeito público – para a
imprensa, sobretudo – o multado pode ser equiparado a qualquer outra pessoa
punida, a um malfeitor, por exemplo.
Afortunadamente, no caso
real em questão, outra fração decisória do sistema de controle chegou à
conclusão de que o episódio era irrelevante, logo, não havia fundamento para a
multa.
Mas bem poderia ter sido
contrário. A angústia do gestor serviu para lhe ensinar um par de coisas a que
deve prestar atenção todo e qualquer indivíduo apto ao exercício de uma função
pública como dirigente. A primeira é que o país conta com mecanismos contábeis
bastante eficientes no controle das contas públicas – é falsa a impressão de
gandaia que a imprensa costuma transmitir a seu público leitor. A segunda: se o
prevaricador é membro, seja grande ou pequeno, do estamento patrimonialista,
tem toda chance de escapar impune, mesmo quando é evidente a sua culpa. Se,
porém, não faz parte direta ou indiretamente da turma, arrisca o pescoço, ainda
que navegue no mar da lisura.
Para se chegar à moral da
história, vale considerar a hipótese de que determinados sistemas políticos
funcionam com uma espécie de inconsciente social que trabalha secretamente para
desencorajar o cidadão sério a dirigir órgãos estatais. A autoproteção do
aparelho de Estado é ambígua, porque oscila entre a correção técnico-jurídica e
o abismo dos desvios e privilégios patrimonialistas.
Esse é também, no fundo, o
inconsciente discursivo de uma imprensa que ainda espelha os sujeitos do
patrimônio, isto é, as grandes famílias. Cargo público é negócio de risco para
quem anda nos trilhos – isto é, fora da bitola patrimonial –, pois pode ser
atropelado aleatoriamente pela locomotiva de papel. Aqui, de fato, só os
malfeitores são felizes.
***
[Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor
titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro]