sexta-feira, 20 de julho de 2012

Adeus e obrigada, muito obrigada à Roselina!



Roselina Colaço Azevedo (1921-2012) é uma dessas pessoas que deixaram marcas. Eu era uma menina quando a conheci, e ela não passava despercebida. Era uma mulher jovem, de estatura pequena, que se cobria de preto dos pés à cabeça: um lenço amarrado como turbante, que mal deixava ver alguns fios do cabelo fino e ralo; uma camisa de mangas compridas hermeticamente fechada até o colarinho; uma saia de pregas que chegava ao tornozelo; meias e sapatos sem salto. Roselina usava tanta roupa, e tão preta, que não permitia vislumbrar nenhum contorno de seu corpo sob elas.


Em meus olhos de criança, algumas imagens ficaram fortemente registradas, como que expulsas daquele visual enegrecido: o brilho do crucifixo preso a uma longa corrente grossa – que Roselina usava sobre a camisa –, as mãos grossas e sempre feridas e um rosto, de traços enérgicos e duros, que transmitia uma mansidão bíblica pelo olhar. Definitivamente, Roselina não era deste mundo.

Não me lembro qual a razão (e tampouco se algum dia ela a relatou), mas Roselina veio do Nordeste para Dourados em 1936, após abandonar sua ordem religiosa, onde foi freira — uma pernambucana que nasceu em Limoeiro e decidiu passar o resto de sua vida em Mato Grosso do Sul. Era uma beata, como se poderia esperar de sua formação religiosa, frequentava a igreja diariamente e trabalhava como se fosse várias. Construiu sua própria casa, aos poucos, com a ajuda de muitos amigos. Cansei de vê-la na escada fazendo serviço de pedreiro. Lembro-me de quando começou a trabalhar com sua ideia da “Casa da Divina Providência”.

Roselina realizava, praticamente sozinha, um trabalho difícil e muito delicado, que até hoje não entendo como aguentava fazer: recolhia em sua própria casa, tal qual uma providência divina, pessoas miseráveis que estavam à míngua, abandonadas, doentes, à margem de qualquer entidade social, estatal ou familiar. Roselina era, literalmente, a última e a única mão estendida na maioria dos casos de que cuidava. Muitos amigos ajudavam com doações, alimentos, remédios e pequenos serviços temporários. Mas a iniciativa e a dura rotina diária eram exclusivamente dela.

Nos anos 50 e 60, lembro-me muito bem, Roselina andava pela cidade em uma pequena carroça puxada por um cavalo, coletando e carregando restos de comida – lavagem – para sua criação de porcos. Com uma força impressionante, ela enchia alguns tonéis e seguia para sua casa. Engordava os porcos para alimentar seus abrigados e os filhos adotivos, ou para vendê-los quando necessário. Com o tempo, e a perda do vigor físico, ela continuou trabalhando, incansável. Fiquei sabendo que, até recentemente, varava madrugadas costurando roupas e, durante o dia, saía para vendê-las de porta em porta.

Em uma entrevista concedida ao jornal eletrônico Dourados Agora, Roselina relatou que “sempre enfrentou dificuldades para firmar convênios com o poder público porque a ‘Casa da Divina Providência’ funcionava em moradia particular e que seu grande sonho era regularizar a entidade, para obter ajuda governamental a fim de garantir o sustento de seus ‘desamparados’.”

Roselina Colaço Azevedo morreu antes de concretizar seu sonho, no último dia 17, aos 91 anos. Saiu daqui pra voltar a usar branco — sua resplandecente cor interior. E deixou os trajes de luto para todos os rejeitados, desprezados, doentes abandonados, crianças e idosos maltratados que ela acolhia com uma bondade que não sei explicar, não entendo — e que me deixa emocionada quando lembro. Quisera eu ser religiosa, crente, temente, espírita, ou fiel a qualquer crença. Passaria semanas rezando em agradecimento a tudo o que ela fez.

Obrigada, muito obrigada, minha querida Roselina!

 

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