Em época de campanha para prefeitos e julgamento do
mensalão, se posicionar politicamente se tornou tão natural nestes dias quanto
comentar a novela das nove. Mesmo aqueles que dizem desprezar a política são
capazes de engrenar uma conversa fiada sobre o seu provável voto, o candidato
menos pior, talvez o melhor, ou comentar a votação no Supremo Tribunal Federal.
Por que então, em meio ao saudável debate sobre o noticiário, sinto que minha
frase gera algum desconforto?
─ ... é por essas e outras que sou
feminista.
As mulheres não me endossam, como seria de esperar. Os
homens parecem tentar imaginar a que tipo de feminismo eu me refiro. É curioso
notar que, dependendo da roda, um homem se declarar feminista parece mais
apropriado do que uma mulher.
Mas vamos ao contexto. O "essas e outras" que
motivou a ratificação da minha condição feminista foi uma daquelas notícias que
de tempos em tempos refletem a precariedade da situação da mulher no mundo.
Não, a história em questão não dizia respeito a uma vítima de chibatadas em
plena primavera árabe, mas se referia às estúpidas declarações de um deputado
republicano. Todd Akin afirmou que casos de gravidez depois de estupros são
muito raros, porque as mulheres teriam defesas biológicas para evitar a
gravidez quando se trata de um "estupro legítimo" (legitimate rape, em inglês).
Não é para sair empunhando a bandeira do feminismo, se
houvesse uma à mão? Pode ser que o termo feminista tenha ficado um tanto
institucionalizado, como se pressupusesse a ligação com algum movimento formal,
ou então que tenha simplesmente envelhecido - daí o preconceito. Mas não tem
jeito: as mulheres ainda são vítimas de muitas desigualdades, não por culpa de
nossos bem intencionados colegas de trabalho, namorados ou maridos - que se
dizem sinceramente feministas na mesa do bar -, mas de uma condição histórica e
cultural. Se simplesmente ligarmos o "automático", se deixarmos que
nossas opiniões e atitudes se influenciem por um suposto "bom senso"
relacionado à convivência em sociedade, corremos o sério risco de endossar
ingenuamente desigualdades que serviram a séculos de dominação.
Assim como os direitos da criança precisam ser defendidos
- a relação de poder dos adultos (inclusive dos maus pais) sobre elas é óbvia
-, também é preciso ficar atento aos direitos da mulher, em função dessa
dominação histórica. Não é difícil achar mulheres que trabalham, se sustentam,
se julgam bem informadas e sensatas e no entanto aceitam injustiças e
violências relacionadas à condição feminina. Não conheço, é verdade, nenhuma
capaz de desconfiar da "legitimidade" de um estupro porque a vítima
engravidou - isso parece mesmo o auge da ignorância. Mas não é difícil
encontrar quem, diante da constatação de que uma mulher foi atacada, critique a
roupa que ela usava. "Também, né, com aquela minissaia..."
Por isso, além de defender "o aprimoramento e a
ampliação do papel e dos direitos das mulheres na sociedade" (feminismo
segundo o Houaiss), eu também apoio iniciativas como a recente "Marcha das
vadias". Do ponto de vista de estratégia política, nem sei se o termo
"vadia" é o melhor para angariar simpatias mais conservadoras, mas
talvez somente o choque sacoleje mentes e dissolva os últimos resquícios da
cultura machista entranhada em todos nós.
Pois a mulher tem todo o direito de ser uma
"vadia", ou seja lá o que se entenda por isso em atitudes e
vestimentas. Pode ser mesmo uma prostituta. Nada disso a torna culpada de
sofrer um estupro. E ponto. Esse é o espírito do movimento que surgiu no
Canadá, e se espalhou em passeatas pelo mundo, depois que um policial de
Toronto pediu que as mulheres não se vestissem como vadias para não serem
estupradas.
Talvez estejamos precisando de imagens assim - jovens seminuas
exigindo respeito pelas ruas -, semelhantes às dos movimentos de contracultura
dos anos 1960, para fazer frente às cruzadas moralistas que espocam pelo mundo.
Como se não bastasse os absurdos "científicos" pregados pelos líderes
do Tea Party americano, da Rússia e
dos países árabes também chegam notícias de retrocessos. Parece que os
políticos, na falta de ideologias ou saídas econômicas para a crise global,
decidiram defender "a família". Caramba, qual "família"?
Vamos combinar assim: se você vir algum candidato, nessas eleições de outubro,
defender os "valores da família", saia correndo e vote em seu
adversário!
A tal família, à moda antiga, não era boa coisa para a
mulher. Ainda hoje, não precisamos ir muito longe (talvez exista um exemplo bem
a seu lado) para encontrar algum tipo de violência doméstica tolerada em nome
do "bem estar da família". Mulheres humilhadas, mulheres que se
submetem, mulheres que acham que é assim mesmo. Pegue as estatísticas -
qualquer uma, incluindo as brasileiras - para verificar que as mulheres ainda
têm remuneração bem menor que a dos homens, exercendo as mesmas funções.
No seu ambiente de trabalho e na sua casa não é assim? Ao
contrário, as mulheres estão dominando? Que ótimo. Tomara que um dia essas
exceções se tornem regra, e não precisemos mais ficar tão vigilantes. Enquanto
isso, mantenha-se desconfiado, inclusive quando alguém repetir algo do
"senso comum", como "feministas eram aquelas mulheres que
queimavam sutiãs".
Marta Barcellos
Rio de Janeiro, 14/9/2012
[clipado do http://www.digestivocultural.com/]