Quem diria... Tudo o que hoje conhecemos como política
ambiental — cujo foco principal é o cuidado com os diferentes tipos de degradação
e poluição ambiental que podem comprometer a qualidade de vida da população —,
possivelmente não existiria se não fosse por um livro. E que livro! Ele contém citações e mais citações dos
resultados de trabalhos científicos realizados até o início de 1960, mostrando
os efeitos devastadores do DDT e de outros pesticidas sobre os pássaros e
outros animais. E aí está a explicação do título da obra, Primavera Silenciosa (Silent
Spring, no original): os pássaros, ao se alimentarem de insetos envenenados,
morriam também e assim, em plena primavera, estação de acasalamento e reprodução,
eles não mais cantariam.
O livro foi publicado nos Estados Unidos, após
quatro anos de estudos por Rachel Carson (1907-1964), uma bióloga marinha que
tinha a habilidade de escrever de forma clara e acessível ao público leigo (uma
raridade entre cientistas até hoje). Ela também escreveu artigos de destaque e
romances focalizando a história natural e o meio ambiente, incluindo uma
premiada trilogia — Under the Seawind
(Sob o vento marítimo), The Sea Around Us
(O mar à nossa volta) e The Ends of the
Sea (Os confins do mar) — que apresenta a vida marinha em linguagem
acessível, em forma de história.
Com a publicação de Primavera
Silenciosa, Rachel Carson foi execrada pelos poderosos da indústria
química, sendo chamada de louca e coisas piores. No entanto, graças às
denúncias de seu livro, ocorreram mudanças políticas e de conduta em testes
químicos de produtos. Hoje, com o devido reconhecimento, ela está na lista da
revista Time como uma das
personalidades mais influentes do século 20, e seu polêmico livro é reeditado e
traduzido mundo afora. No Brasil, a editora Gaia o relançou em 2010:
Sobre Rachel Carson, as consequências de seu trabalho, e
muito mais, Flávio de Carvalho Serpa escreveu um detalhado artigo (publicado no
site Planeta Sustentável, em 6 de
setembro de 2012), que transcrevo a seguir.
Para mais
informações, veja também http://www.rachelcarson.org/
Primavera Silenciosa
Como a bióloga marinha Rachel
Carson despertou a consciência ambiental planetária
Flávio de
Carvalho Serpa
Quando a bióloga marinha Rachel Carson lançou seu
histórico livro, Primavera Silenciosa,
em setembro de 1962, qualquer indústria química de inseticidas e outros
derivados sintéticos podia lançar no meio ambiente o que bem entendesse, sem
testes cientificamente projetados. No fundo, praticamente bastava que essas
substâncias sintetizadas não matassem o químico responsável. Aliás, nem existia
nos EUA a agência de proteção ambiental, a EPA.
Ao completar o cinquentenário, neste mês de setembro, Primavera Silenciosa já é um clássico do
movimento de defesa do meio ambiente, e influenciou decisivamente várias
gerações de cientistas e militantes. Al Gore, o ex-vice-presidente dos EUA e
criador do documentário Uma verdade
inconveniente, tinha em sua sala na Casa Branca somente um quadro de
personalidade pendurado na parede: era uma foto de Rachel Carlson. Gore
escreveu no prefácio da edição comemorativa de Primavera Silenciosa de 1992 o seguinte: “Para mim, Primavera Silenciosa teve um profundo
impacto... realmente, Rachel Carlson foi uma das razões pelas quais me tornei
consciente do meio ambiente e me envolvi com os assuntos ambientais. Carlson me
influenciou mais do que qualquer pessoa, e talvez até mesmo mais do que todas
elas juntas”. Em 2007, o documentário de Gore levou ao mesmo tempo o Oscar da
Academia de Cinema americana com o melhor documentário e, em seguida, arrebatou
também o Nobel da Paz. Uma dívida histórica paga a Rachel.
Lamentavelmente ela não pôde assistir o triunfo de sua
empreitada, que catalisou a militância ecológica em todo planeta. Rachel morreu
prematuramente de câncer, aos 56 anos, em 1964, dois anos depois de completar
sua principal obra. Não pôde se orgulhar também das honrarias póstumas. A
Escola de Jornalismo de Nova York considerou Primavera Silenciosa uma das melhores reportagens investigativas do
século XX. E o jornal inglês The Guardian
a colocou no primeiro lugar entre as cem pessoas que mais contribuíram para a
defesa do meio ambiente em todos os tempos.
Pouco conhecida na atual geração de militantes ecológicos
no Brasil, Rachel é uma celebridade mundial.
Embora tenha sido uma bióloga marinha, o grande feito de
Rachel foi traduzir toda a literatura científica disponível à época numa
brilhante obra literária de denúncia e divulgação científica. O livro tem nada
menos de 57 das suas 328 páginas só de bibliografia de papers consultados. Isolados ou perdidos nas bibliotecas
universitárias esses preciosos estudos e pesquisas só acumulavam poeira. Foi o
gênio literário de Rachel que juntou toda essa munição científica pela primeira
vez, tornando-a acessiva ao grande público leigo, e disparando os primeiros e
ruidosos salvos na guerra dos ecólogos contra a toda poderosa indústria química
da época.
Era uma guerra desigual, naturalmente. Uma jovem tímida,
recatada, contra o poder arrogante dos acadêmicos, deslumbrados com a revolução
da química orgânica. O porta-voz da associação das indústrias químicas dos EUA,
Robert White-Stevens, não deixou por menos após a publicação da obra: “Os mais
importantes argumentos da senhora Rachel Carson são grossas distorções da
verdade, completamente sem suporte científico, evidência experimental e
práticas gerais de trabalho de campo. A sugestão dela de que os pesticidas são
de fato biocidas destruindo toda vida é obviamente absurda... Se alguém seguir
os ensinamentos de senhora Carlson, vamos voltar à Idade Média, e os insetos,
doenças e vermes voltariam a herdar a Terra”.
A verdade histórica é que os testes conduzidos pelos
fabricantes de pesticidas eram extremamente precários. O erro fundamental é que
se testava o efeito sobre algum tipo de inseto ou erva daninha, isoladamente em laboratório. Mas
na natureza e no mundo exterior aos assépticos laboratórios existe uma cadeia
ecológica. Se os insetos morrem, os pássaros que se alimentam dele também
desaparecem. Se as minhocas que rastejam nos campos bombardeados por
pulverização aérea são contaminadas, os animais maiores que se alimentam dela
também são intoxicados. E assim a cadeia de contaminação acaba atingindo até o
topo humano da pirâmide.
E uma vez desequilibrada a cadeia de presas e predadores,
a volta à normalidade pode ser demorada, na melhor das hipóteses. Eventualmente
todo o nicho ecológico desmorona em longo prazo. A indústria química, inebriada
pelo sucesso dos novos compostos e substâncias que permitiam domar desde as
dores de cabeça até doenças consideradas incuráveis décadas antes, agiu de
maneira arrogante e irresponsável tentando torpedear a carreira e reputação de
Rachel. Mas ela acabou vencendo a briga. O DDT e outros inseticidas foram
finalmente banidos depois de investigações mais rigorosas. E a indústria
química teve de rebatizar os pesticidas como “defensivos agrícolas”.
O presidente John Kennedy ficou tão impressionado com o
livro que mandou abrir investigações federais, seguidas por audiências no
senado americano. A EPA, a agência ambiental americana, surgiria somente em
1972, graças, justamente às denúncias eloquentes de Rachel.
Atualmente, Primavera
Silenciosa é leitura obrigatória em muitas escolas americanas tanto pela
importância literária quanto ao fato de ter sido um marco no enfrentamento da
poderosa e arrogante indústria química. Mas os alunos são advertidos para levar
em conta que alguns dados são, hoje, considerados errados. Pela falta de
conhecimento da natureza do câncer na época, todo um capítulo do livro
desmoronou. Nada se sabia sobre a natureza endógena ou hereditária do câncer, e
Rachel diagnosticou a doença como causada pelos pesticidas mutagênicos.
Além disso, o banimento imediato do uso do DDT, em vez da
regulamentação da sua aplicação, causou surtos de epidemias de doenças causadas
por mosquitos nos países pobres, especialmente a malária, com milhares de
mortes que poderiam ter sido evitadas com a pulverização seletiva. Mas isso não
afeta o valor histórico de Rachel Carson.
Essa obra de divulgação científica acessível ao público em
geral fez o que centenas de papers
acadêmicos, em linguagem empolada e cheias de jargão, não conseguiram antes. E
literariamente a imagem que ela deu, à luz de uma primavera silenciosa, tem um
poderoso e tocante poder até hoje. O silêncio dissonante de uma primavera que
se inicia toca fundo na imaginação: sem cantorias e revoadas de pássaros, sem
as toadas de grilos e outros insetos benéficos, sem peixes nos córregos – quase
uma paz de cemitério, profundamente melancólica.
Outro papel importante da obra de Rachel foi a divulgação
da teoria evolucionista de Charles Darwin, especialmente numa América
conservadora e religiosa. Primavera
Silenciosa é uma coletânea viva de extraordinários exemplos da evolução
darwiniana em ação. Não
com exemplos de casos remotos dos pássaros e tartarugas da ilha Galápagos, visitada
por Darwin quando ele teve a inspiração de montar sua teoria.
No livro de Rachel os exemplos de ação evolutiva saltam do
meio ambiente onde as pessoas vivem. Elas estão assistindo com seus próprios
olhos nos fundos de quintais de sua casa o desaparecimento de pássaros e a
proliferação de pestes nas árvores dos bosques logo em seguida às pulverizações
de inseticidas em larga escala. Elas podem perceber no dia a dia o desequilíbrio
do meio ambiente. Percebem que a eliminação de um inseto ou erva considerada
daninhos causa uma proliferação de outros insetos ou pragas que eram mantidas
sobre controle natural, na luta entre presas e predadores. É a teoria da
evolução em ação, em tempo real, debaixo dos olhos de quem contempla a paisagem
silenciosa e ainda se lembra da exuberância da primavera passada.
Rachel na verdade não era a favor do banimento dos
inseticidas químicos, e escreve isso várias vezes no seu livro. O que ela
denunciava era o uso descontrolado e abusivo nas pulverizações aéreas que
atingiam todo meio ambiente ao redor das pragas inimigas. O barateamento dos
aviões de pulverizações, depois do boom
aeronáutico da Segunda Guerra, inspirou governos e fazendeiros a combater as
pragas com a força bruta dos bombardeios. Se a América derrotou a máquina de
guerra do nazismo e dos japoneses, porque não iria derrotar formigas e outras
pragas da lavoura?
Rachel defendia o uso em pequena escala, de forma
seletiva, apenas em focos limitados.
Ela arrolou dezenas de outros métodos não químicos que
poderiam ter sido usados como o emprego dos inimigos naturais dos insetos
daninhos. Dezenas de exemplos de controle natural de pragas já estavam
consolidados na literatura científica. Com custos insignificantes e duradouros
— as pulverizações tinham de ser repetidas várias vezes e em muitos casos só
fizeram selecionar variedades de insetos resistentes ao DDT e mais prolíficos
ainda.
Mas toda essa bem-sucedida experiência anterior ficou fora
de moda com o surgimento e proliferação das soluções químicas, embaladas pelo
sucesso em várias áreas, como nas novas medicações e na enorme variedade de
plásticos orgânicos que mudaram a face da sociedade em todo mundo. A partir de
1960 os grandes fabricantes de produtos químicos drenaram das universidades
quase todos os entomólogos que executavam controle biológico de insetos. Dados
da época relatados por Rachel mostram que 98% dos entomólogos estavam
contratados por empresas químicas e somente os 2% restantes ainda mantinham as
velhas e eficientes práticas de controle biológico. Foi um terrível retrocesso.
Escreve ela: “As maiores indústrias químicas estão
despejando dinheiro nas universidades para financiar pesquisas sobre
inseticidas. Isso cria bolsas atraentes para os estudantes de pós-graduação e
cargos cobiçados nas universidades. Os estudos relativos ao controle biológico,
por outro lado, nunca recebem esses incentivos — pela simples razão que não
prometem a ninguém as fortunas que podem ser ganhas na indústria química. São
deixados a cargo dos órgãos estaduais e federais, em que os salários são
bastante inferiores”.
Embora essa situação tenha mudado bastante, com a
reativação do trabalho de cientistas dedicados aos métodos naturais de
controle, a batalha de Rachel está longe de ser vencida, como testemunha o posfácio
da edição comemorativa de Primavera
Silenciosa. Edward O. Wilson, o renomado entomólogo, escreve nas linhas
finais: “Ainda estamos envenenando o ar e a água, corroendo a biosfera. Hoje
entendemos melhor do que nunca porque precisamos insistir até o fim no esforço
para salvar o meio ambiente, em conformidade com a mente e o espírito da
corajosa autora de Primavera Silenciosa”.
Na verdade, as frentes de combate pela defesa do meio
ambiente e a qualidade da vida humana se ampliaram espetacularmente com ameaças
que Rachel nem imaginava. O uso de água reciclada no abastecimento, por
exemplo. A quantidade de drogas de todos os tipos, de antidepressivos até
hormônios sintéticos presentes vem crescendo nos peixes, e ainda não se sabe ao
certo o efeito que essas medicações residuais podem causar no metabolismo
humano. Nem existiam no tempo dela algumas substâncias de uso industrial, como
o PCB (bifenil policlorado) que entravam como componentes em plásticos
especiais, materiais de isolamento em equipamentos elétricos como
transformadores de força. Ficou provado que o PCB interfere no sistema
endócrino humano, o que levou à sua proibição em 1979. Mas os resíduos dessa
substância ainda estão presentes na natureza e são difíceis de serem
eliminados. Outra, o ftalato, usado para amolecer plásticos em brinquedos e
chupetas para bebês, está em quarentena em vários países, suspeito de provocar
obesidade em crianças.
Portanto, a comemoração do cinquentenário de Primavera Silenciosa ainda está longe de
tê-lo tornado num marco de vitória. Está mais para ganhar seu lugar como uma
bandeira de advertência permanente de que sem vigilância tudo que pode dar
errado vai acabar dando.
Flávio de Carvalho Serpa, em 6/setembro/2012.