sábado, 22 de setembro de 2012

“Primavera Silenciosa”: 50 anos de um livro que fez muito barulho!


Quem diria... Tudo o que hoje conhecemos como política ambiental — cujo foco principal é o cuidado com os diferentes tipos de degradação e poluição ambiental que podem comprometer a qualidade de vida da população —, possivelmente não existiria se não fosse por um livro. E que livro! Ele contém citações e mais citações dos resultados de trabalhos científicos realizados até o início de 1960, mostrando os efeitos devastadores do DDT e de outros pesticidas sobre os pássaros e outros animais. E aí está a explicação do título da obra, Primavera Silenciosa (Silent Spring, no original): os pássaros, ao se alimentarem de insetos envenenados, morriam também e assim, em plena primavera, estação de acasalamento e reprodução, eles não mais cantariam.

O livro foi publicado nos Estados Unidos, após quatro anos de estudos por Rachel Carson (1907-1964), uma bióloga marinha que tinha a habilidade de escrever de forma clara e acessível ao público leigo (uma raridade entre cientistas até hoje). Ela também escreveu artigos de destaque e romances focalizando a história natural e o meio ambiente, incluindo uma premiada trilogia — Under the Seawind (Sob o vento marítimo), The Sea Around Us (O mar à nossa volta) e The Ends of the Sea (Os confins do mar) — que apresenta a vida marinha em linguagem acessível, em forma de história.

Com a publicação de Primavera Silenciosa, Rachel Carson foi execrada pelos poderosos da indústria química, sendo chamada de louca e coisas piores. No entanto, graças às denúncias de seu livro, ocorreram mudanças políticas e de conduta em testes químicos de produtos. Hoje, com o devido reconhecimento, ela está na lista da revista Time como uma das personalidades mais influentes do século 20, e seu polêmico livro é reeditado e traduzido mundo afora. No Brasil, a editora Gaia o relançou em 2010:


Sobre Rachel Carson, as consequências de seu trabalho, e muito mais, Flávio de Carvalho Serpa escreveu um detalhado artigo (publicado no site Planeta Sustentável, em 6 de setembro de 2012), que transcrevo a seguir.

Para mais informações, veja também http://www.rachelcarson.org/

Primavera Silenciosa

Como a bióloga marinha Rachel Carson despertou a consciência ambiental planetária

Flávio de Carvalho Serpa

Quando a bióloga marinha Rachel Carson lançou seu histórico livro, Primavera Silenciosa, em setembro de 1962, qualquer indústria química de inseticidas e outros derivados sintéticos podia lançar no meio ambiente o que bem entendesse, sem testes cientificamente projetados. No fundo, praticamente bastava que essas substâncias sintetizadas não matassem o químico responsável. Aliás, nem existia nos EUA a agência de proteção ambiental, a EPA.

Ao completar o cinquentenário, neste mês de setembro, Primavera Silenciosa já é um clássico do movimento de defesa do meio ambiente, e influenciou decisivamente várias gerações de cientistas e militantes. Al Gore, o ex-vice-presidente dos EUA e criador do documentário Uma verdade inconveniente, tinha em sua sala na Casa Branca somente um quadro de personalidade pendurado na parede: era uma foto de Rachel Carlson. Gore escreveu no prefácio da edição comemorativa de Primavera Silenciosa de 1992 o seguinte: “Para mim, Primavera Silenciosa teve um profundo impacto... realmente, Rachel Carlson foi uma das razões pelas quais me tornei consciente do meio ambiente e me envolvi com os assuntos ambientais. Carlson me influenciou mais do que qualquer pessoa, e talvez até mesmo mais do que todas elas juntas”. Em 2007, o documentário de Gore levou ao mesmo tempo o Oscar da Academia de Cinema americana com o melhor documentário e, em seguida, arrebatou também o Nobel da Paz. Uma dívida histórica paga a Rachel.

Lamentavelmente ela não pôde assistir o triunfo de sua empreitada, que catalisou a militância ecológica em todo planeta. Rachel morreu prematuramente de câncer, aos 56 anos, em 1964, dois anos depois de completar sua principal obra. Não pôde se orgulhar também das honrarias póstumas. A Escola de Jornalismo de Nova York considerou Primavera Silenciosa uma das melhores reportagens investigativas do século XX. E o jornal inglês The Guardian a colocou no primeiro lugar entre as cem pessoas que mais contribuíram para a defesa do meio ambiente em todos os tempos.

Pouco conhecida na atual geração de militantes ecológicos no Brasil, Rachel é uma celebridade mundial.

Embora tenha sido uma bióloga marinha, o grande feito de Rachel foi traduzir toda a literatura científica disponível à época numa brilhante obra literária de denúncia e divulgação científica. O livro tem nada menos de 57 das suas 328 páginas só de bibliografia de papers consultados. Isolados ou perdidos nas bibliotecas universitárias esses preciosos estudos e pesquisas só acumulavam poeira. Foi o gênio literário de Rachel que juntou toda essa munição científica pela primeira vez, tornando-a acessiva ao grande público leigo, e disparando os primeiros e ruidosos salvos na guerra dos ecólogos contra a toda poderosa indústria química da época.

Era uma guerra desigual, naturalmente. Uma jovem tímida, recatada, contra o poder arrogante dos acadêmicos, deslumbrados com a revolução da química orgânica. O porta-voz da associação das indústrias químicas dos EUA, Robert White-Stevens, não deixou por menos após a publicação da obra: “Os mais importantes argumentos da senhora Rachel Carson são grossas distorções da verdade, completamente sem suporte científico, evidência experimental e práticas gerais de trabalho de campo. A sugestão dela de que os pesticidas são de fato biocidas destruindo toda vida é obviamente absurda... Se alguém seguir os ensinamentos de senhora Carlson, vamos voltar à Idade Média, e os insetos, doenças e vermes voltariam a herdar a Terra”.

A verdade histórica é que os testes conduzidos pelos fabricantes de pesticidas eram extremamente precários. O erro fundamental é que se testava o efeito sobre algum tipo de inseto ou erva daninha, isoladamente em laboratório. Mas na natureza e no mundo exterior aos assépticos laboratórios existe uma cadeia ecológica. Se os insetos morrem, os pássaros que se alimentam dele também desaparecem. Se as minhocas que rastejam nos campos bombardeados por pulverização aérea são contaminadas, os animais maiores que se alimentam dela também são intoxicados. E assim a cadeia de contaminação acaba atingindo até o topo humano da pirâmide.

E uma vez desequilibrada a cadeia de presas e predadores, a volta à normalidade pode ser demorada, na melhor das hipóteses. Eventualmente todo o nicho ecológico desmorona em longo prazo. A indústria química, inebriada pelo sucesso dos novos compostos e substâncias que permitiam domar desde as dores de cabeça até doenças consideradas incuráveis décadas antes, agiu de maneira arrogante e irresponsável tentando torpedear a carreira e reputação de Rachel. Mas ela acabou vencendo a briga. O DDT e outros inseticidas foram finalmente banidos depois de investigações mais rigorosas. E a indústria química teve de rebatizar os pesticidas como “defensivos agrícolas”.

O presidente John Kennedy ficou tão impressionado com o livro que mandou abrir investigações federais, seguidas por audiências no senado americano. A EPA, a agência ambiental americana, surgiria somente em 1972, graças, justamente às denúncias eloquentes de Rachel.

Atualmente, Primavera Silenciosa é leitura obrigatória em muitas escolas americanas tanto pela importância literária quanto ao fato de ter sido um marco no enfrentamento da poderosa e arrogante indústria química. Mas os alunos são advertidos para levar em conta que alguns dados são, hoje, considerados errados. Pela falta de conhecimento da natureza do câncer na época, todo um capítulo do livro desmoronou. Nada se sabia sobre a natureza endógena ou hereditária do câncer, e Rachel diagnosticou a doença como causada pelos pesticidas mutagênicos.

Além disso, o banimento imediato do uso do DDT, em vez da regulamentação da sua aplicação, causou surtos de epidemias de doenças causadas por mosquitos nos países pobres, especialmente a malária, com milhares de mortes que poderiam ter sido evitadas com a pulverização seletiva. Mas isso não afeta o valor histórico de Rachel Carson.

Essa obra de divulgação científica acessível ao público em geral fez o que centenas de papers acadêmicos, em linguagem empolada e cheias de jargão, não conseguiram antes. E literariamente a imagem que ela deu, à luz de uma primavera silenciosa, tem um poderoso e tocante poder até hoje. O silêncio dissonante de uma primavera que se inicia toca fundo na imaginação: sem cantorias e revoadas de pássaros, sem as toadas de grilos e outros insetos benéficos, sem peixes nos córregos – quase uma paz de cemitério, profundamente melancólica.

Outro papel importante da obra de Rachel foi a divulgação da teoria evolucionista de Charles Darwin, especialmente numa América conservadora e religiosa. Primavera Silenciosa é uma coletânea viva de extraordinários exemplos da evolução darwiniana em ação. Não com exemplos de casos remotos dos pássaros e tartarugas da ilha Galápagos, visitada por Darwin quando ele teve a inspiração de montar sua teoria.

No livro de Rachel os exemplos de ação evolutiva saltam do meio ambiente onde as pessoas vivem. Elas estão assistindo com seus próprios olhos nos fundos de quintais de sua casa o desaparecimento de pássaros e a proliferação de pestes nas árvores dos bosques logo em seguida às pulverizações de inseticidas em larga escala. Elas podem perceber no dia a dia o desequilíbrio do meio ambiente. Percebem que a eliminação de um inseto ou erva considerada daninhos causa uma proliferação de outros insetos ou pragas que eram mantidas sobre controle natural, na luta entre presas e predadores. É a teoria da evolução em ação, em tempo real, debaixo dos olhos de quem contempla a paisagem silenciosa e ainda se lembra da exuberância da primavera passada.

Rachel na verdade não era a favor do banimento dos inseticidas químicos, e escreve isso várias vezes no seu livro. O que ela denunciava era o uso descontrolado e abusivo nas pulverizações aéreas que atingiam todo meio ambiente ao redor das pragas inimigas. O barateamento dos aviões de pulverizações, depois do boom aeronáutico da Segunda Guerra, inspirou governos e fazendeiros a combater as pragas com a força bruta dos bombardeios. Se a América derrotou a máquina de guerra do nazismo e dos japoneses, porque não iria derrotar formigas e outras pragas da lavoura?

Rachel defendia o uso em pequena escala, de forma seletiva, apenas em focos limitados.

Ela arrolou dezenas de outros métodos não químicos que poderiam ter sido usados como o emprego dos inimigos naturais dos insetos daninhos. Dezenas de exemplos de controle natural de pragas já estavam consolidados na literatura científica. Com custos insignificantes e duradouros — as pulverizações tinham de ser repetidas várias vezes e em muitos casos só fizeram selecionar variedades de insetos resistentes ao DDT e mais prolíficos ainda.

Mas toda essa bem-sucedida experiência anterior ficou fora de moda com o surgimento e proliferação das soluções químicas, embaladas pelo sucesso em várias áreas, como nas novas medicações e na enorme variedade de plásticos orgânicos que mudaram a face da sociedade em todo mundo. A partir de 1960 os grandes fabricantes de produtos químicos drenaram das universidades quase todos os entomólogos que executavam controle biológico de insetos. Dados da época relatados por Rachel mostram que 98% dos entomólogos estavam contratados por empresas químicas e somente os 2% restantes ainda mantinham as velhas e eficientes práticas de controle biológico. Foi um terrível retrocesso.

Escreve ela: “As maiores indústrias químicas estão despejando dinheiro nas universidades para financiar pesquisas sobre inseticidas. Isso cria bolsas atraentes para os estudantes de pós-graduação e cargos cobiçados nas universidades. Os estudos relativos ao controle biológico, por outro lado, nunca recebem esses incentivos — pela simples razão que não prometem a ninguém as fortunas que podem ser ganhas na indústria química. São deixados a cargo dos órgãos estaduais e federais, em que os salários são bastante inferiores”.

Embora essa situação tenha mudado bastante, com a reativação do trabalho de cientistas dedicados aos métodos naturais de controle, a batalha de Rachel está longe de ser vencida, como testemunha o posfácio da edição comemorativa de Primavera Silenciosa. Edward O. Wilson, o renomado entomólogo, escreve nas linhas finais: “Ainda estamos envenenando o ar e a água, corroendo a biosfera. Hoje entendemos melhor do que nunca porque precisamos insistir até o fim no esforço para salvar o meio ambiente, em conformidade com a mente e o espírito da corajosa autora de Primavera Silenciosa”.

Na verdade, as frentes de combate pela defesa do meio ambiente e a qualidade da vida humana se ampliaram espetacularmente com ameaças que Rachel nem imaginava. O uso de água reciclada no abastecimento, por exemplo. A quantidade de drogas de todos os tipos, de antidepressivos até hormônios sintéticos presentes vem crescendo nos peixes, e ainda não se sabe ao certo o efeito que essas medicações residuais podem causar no metabolismo humano. Nem existiam no tempo dela algumas substâncias de uso industrial, como o PCB (bifenil policlorado) que entravam como componentes em plásticos especiais, materiais de isolamento em equipamentos elétricos como transformadores de força. Ficou provado que o PCB interfere no sistema endócrino humano, o que levou à sua proibição em 1979. Mas os resíduos dessa substância ainda estão presentes na natureza e são difíceis de serem eliminados. Outra, o ftalato, usado para amolecer plásticos em brinquedos e chupetas para bebês, está em quarentena em vários países, suspeito de provocar obesidade em crianças.

Portanto, a comemoração do cinquentenário de Primavera Silenciosa ainda está longe de tê-lo tornado num marco de vitória. Está mais para ganhar seu lugar como uma bandeira de advertência permanente de que sem vigilância tudo que pode dar errado vai acabar dando.

Flávio de Carvalho Serpa, em 6/setembro/2012.

 

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