Pra mim, Seu Geraldo era sinônimo de Pantanal.
Era impossível pensar em uma viagem de trabalho para o Passo do Lontra, sem que
alguém se lembrasse carinhosamente desse véio
que morava na BEP – Base de Estudos do Pantanal da Universidade Federal de Mato
Grosso do Sul. Fiquei muito triste ao saber que ele faleceu, ainda mais de uma
forma tão estúpida e repentina, mas não vou escrever sobre ele. Já o fez o
Prof. Masao Uetanabaro, meu querido amigo que tantas vezes trabalhou comigo no
Pantanal e que compartilhava meu respeito pelo véio. O Masao, ou melhor, “Marçal” (como dizia Seu Geraldo), o conhecia desde a construção da BEP, há mais de 40
anos:
Seu Geraldo, Véio Geraldo...
Só sei que ele veio
lá das bandas de Montes Claros (MG), pertinho da Bahia. Nem sua idade e seu
nome completo eu sabia. Era difícil alguém não conhecer o véio Geraldo no trecho do Passo do Lontra. Figura com a boca
escancarada para cantar e gargalhar, tratado com todo carinho pelas pessoas que
o conheceram.
Seu Geraldo sempre se atrapalhava com os nomes das pessoas:
“né, Jizué?”, “né, Cintha?”, “né, Divaldo?”, “né, seu Marçal?”, “né, seu
Otavo?”... Não importava, a gente sabia a quem ele se referia – ele tinha
seus próprios códigos para caracterizar cada um de nós, muitas vezes de forma
jocosa. O importante é que sua alma era infinitamente grande, como o Pantanal,
que ele tanto amara.
Esperava
ansiosamente pelas caravanas que chegavam à BEP. Era motivo de festa. Ele sabia
que na hora do nosso lazer iríamos a algum boteco para beber aquelas cervas bem
geladinhas para amainar um pouco o calor infernal em algumas épocas do ano, ou
para esquentar o frio que raramente por lá acontecia.
Aí o véio Geraldo se emperiquitava todo,
fazia questão de colocar seu chapéu e o inseparável paletó. E para começar a
cantar, só depois de esquentar as turbinas – e haja cerveja para isso!!! Quando
estava pronto para cantar sempre tinha o charminho: “canta, seu Geraldo!”,
“canta, seu Geraldo...” Depois daquela olhada ao seu redor e o sorriso
largo, começava a cantoria.
Ele gostava de platéia
ao seu lado, principalmente das mulheres. E como gostava de mulher – ficava
todo faceiro... Muitas vezes as pessoas pediam para cantar essa ou aquela
música. Mas, para terminar a cantoria, invariavelmente vinha o “Beijinho Doce”.
Eu preferia em
várias ocasiões que ele escolhesse as músicas que iria cantar: ele tinha um
repertório, que não sei de onde tirava – de qual baú saíam aquelas autenticas
modas de viola que nunca tínhamos ouvido. Ele dizia que eram dele. Sei lá –
esse segredo se foi com o véio
Geraldo. Dia desses, quando cantarmos juntos novamente, ele vai me contar de
quem eram as músicas. Talvez nem ele saiba, pode ser.
Seu Geraldo tinha a sabedoria dos velhos pantaneiros. Dizia
que se não fossem os mosquitos e o calor intenso, o Pantanal já teria se
acabado: seriam tantos turistas, alguns bem educados e outros nem tanto assim –
que estes acabariam por emporcalhar o Pantanal com sujeira de vários tipos:
desde as garrafas pets, latinhas de cerveja, sacos plásticos, poluição
dos rios. Tem até a sujeira mental dos humanos, dizia. Você tinha toda a razão
meu querido véio!
As suas histórias
eram fantásticas. Ele as apresentava com a esperteza de uma velha raposa –
nunca se sabia até onde era verdade e onde começava a fantasia que girava em
sua cabeça, sempre entremeada de largos sorrisos e quase sempre cobrindo o
rosto com as mãos já envelhecidas pelo tempo.
Pois é, Seu Geraldo. Chegou o seu tempo de ir
para o outro lado. Uma pena ter sido de um modo que você detestava.
Você, Seu Geraldo, só ia para a
cidade quando não podia deixar de ir. Você gostava mesmo era de ficar no
Pantanal, ao lado das águas, dos bichos (até de onça, que você tinha o maior
pavor!!!), do sol inclemente, das raras frescuras, do vento, do poeirão, de
gente que você viu uma única vez na vida, de gente que você viu várias vezes na
vida, de gente que vai sentir saudades de você, véio Geraldo. Eis que um dia na cidade “vem uma moto e te pincha no
chão”. Você que se salvou de picada de boca-de-sapo e até de onça, vai embora
estupidamente pisado por uma motocicleta na cidade. É muita ironia!
Quem passar pelas
bandas do Passo do Lontra em dias de lua cheia e ficar em silêncio absoluto vai
ouvir ao longe uma voz esganiçada cantando baixinho: “que beijinho doce que ela
tem, depois que beijei ela nunca mais beijei ninguém...”
Um “Beijinho Doce” procê, Seu véio Geraldo, e até um dia!
Com carinho do
“japoneis”,
Masao Uetanabaro
PS: Véio, por favor, quando a gente se
encontrar novamente, quero comer aquele pintado que você pescou no rio Miranda.
Favor não esconder o peixe debaixo da roupa suja que você levava para a cidade
de Miranda, dizendo que a véia ia
lavar para você, seu velhaco!!!