quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Adeus ao “Seu” Geraldo, por Masao Uetanabaro


Pra mim, Seu Geraldo era sinônimo de Pantanal. Era impossível pensar em uma viagem de trabalho para o Passo do Lontra, sem que alguém se lembrasse carinhosamente desse véio que morava na BEP – Base de Estudos do Pantanal da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Fiquei muito triste ao saber que ele faleceu, ainda mais de uma forma tão estúpida e repentina, mas não vou escrever sobre ele. Já o fez o Prof. Masao Uetanabaro, meu querido amigo que tantas vezes trabalhou comigo no Pantanal e que compartilhava meu respeito pelo véio. O Masao, ou melhor, “Marçal” (como dizia Seu Geraldo), o conhecia desde a construção da BEP, há mais de 40 anos:

Seu Geraldo, Véio Geraldo...

Só sei que ele veio lá das bandas de Montes Claros (MG), pertinho da Bahia. Nem sua idade e seu nome completo eu sabia. Era difícil alguém não conhecer o véio Geraldo no trecho do Passo do Lontra. Figura com a boca escancarada para cantar e gargalhar, tratado com todo carinho pelas pessoas que o conheceram.

Seu Geraldo sempre se atrapalhava com os nomes das pessoas: “né, Jizué?”, “né, Cintha?”, “né, Divaldo?”, “né, seu Marçal?”, “né, seu Otavo?”... Não importava, a gente sabia a quem ele se referia – ele tinha seus próprios códigos para caracterizar cada um de nós, muitas vezes de forma jocosa. O importante é que sua alma era infinitamente grande, como o Pantanal, que ele tanto amara.

Esperava ansiosamente pelas caravanas que chegavam à BEP. Era motivo de festa. Ele sabia que na hora do nosso lazer iríamos a algum boteco para beber aquelas cervas bem geladinhas para amainar um pouco o calor infernal em algumas épocas do ano, ou para esquentar o frio que raramente por lá acontecia.

Aí o véio Geraldo se emperiquitava todo, fazia questão de colocar seu chapéu e o inseparável paletó. E para começar a cantar, só depois de esquentar as turbinas – e haja cerveja para isso!!! Quando estava pronto para cantar sempre tinha o charminho: “canta, seu Geraldo!”, “canta, seu Geraldo...” Depois daquela olhada ao seu redor e o sorriso largo, começava a cantoria.

Ele gostava de platéia ao seu lado, principalmente das mulheres. E como gostava de mulher – ficava todo faceiro... Muitas vezes as pessoas pediam para cantar essa ou aquela música. Mas, para terminar a cantoria, invariavelmente vinha o “Beijinho Doce”.

Eu preferia em várias ocasiões que ele escolhesse as músicas que iria cantar: ele tinha um repertório, que não sei de onde tirava – de qual baú saíam aquelas autenticas modas de viola que nunca tínhamos ouvido. Ele dizia que eram dele. Sei lá – esse segredo se foi com o véio Geraldo. Dia desses, quando cantarmos juntos novamente, ele vai me contar de quem eram as músicas. Talvez nem ele saiba, pode ser.

Seu Geraldo tinha a sabedoria dos velhos pantaneiros. Dizia que se não fossem os mosquitos e o calor intenso, o Pantanal já teria se acabado: seriam tantos turistas, alguns bem educados e outros nem tanto assim – que estes acabariam por emporcalhar o Pantanal com sujeira de vários tipos: desde as garrafas pets, latinhas de cerveja, sacos plásticos, poluição dos rios. Tem até a sujeira mental dos humanos, dizia. Você tinha toda a razão meu querido véio!

As suas histórias eram fantásticas. Ele as apresentava com a esperteza de uma velha raposa – nunca se sabia até onde era verdade e onde começava a fantasia que girava em sua cabeça, sempre entremeada de largos sorrisos e quase sempre cobrindo o rosto com as mãos já envelhecidas pelo tempo.

Pois é, Seu Geraldo. Chegou o seu tempo de ir para o outro lado. Uma pena ter sido de um modo que você detestava. Você, Seu Geraldo, só ia para a cidade quando não podia deixar de ir. Você gostava mesmo era de ficar no Pantanal, ao lado das águas, dos bichos (até de onça, que você tinha o maior pavor!!!), do sol inclemente, das raras frescuras, do vento, do poeirão, de gente que você viu uma única vez na vida, de gente que você viu várias vezes na vida, de gente que vai sentir saudades de você, véio Geraldo. Eis que um dia na cidade “vem uma moto e te pincha no chão”. Você que se salvou de picada de boca-de-sapo e até de onça, vai embora estupidamente pisado por uma motocicleta na cidade. É muita ironia!

Quem passar pelas bandas do Passo do Lontra em dias de lua cheia e ficar em silêncio absoluto vai ouvir ao longe uma voz esganiçada cantando baixinho: “que beijinho doce que ela tem, depois que beijei ela nunca mais beijei ninguém...”

Um “Beijinho Doce” procê, Seu véio Geraldo, e até um dia!

Com carinho do “japoneis”,

Masao Uetanabaro

PS: Véio, por favor, quando a gente se encontrar novamente, quero comer aquele pintado que você pescou no rio Miranda. Favor não esconder o peixe debaixo da roupa suja que você levava para a cidade de Miranda, dizendo que a véia ia lavar para você, seu velhaco!!!

 

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