Na Fazenda Azulão — a primeira
morada da família Mattos lá pelos idos de 1902 — uma bela mata protegia a casa
do calorão, deixando passar uma aragem úmida e refrescante nas tardes de sol a
pino. A casa, erguida pelo patriarca Francisco de Mattos Pereira, já não existe
mais. A Azulão foi retalhada por heranças, mas boa parte dessa mata foi
mantida, soberana. E ainda hoje ameniza o calor para quem passa por lá.
Erguida pela família de uma das
netas do patriarca — Clarinda de Matos Moreira e seu marido Devaldo Moreira,
paulista e poeta —, outra casa foi construída no local em que hoje um pedaço da
Azulão leva o nome de Fazenda Coqueiro. E nela morou um menino... Um menino que
não andou a cavalo, não correu com medo de boi brabo e tampouco brincou de arar
a terra. Um menino quieto, que desfrutou da sombra da mata para caminhar,
sentar-se e ler — André Matos Moreira.
Esse trineto de Francisco de
Mattos Pereira, e bisneto do Zé Leitão, deu dor de cabeça à família. Baita menino
esquisito! Todo mundo esperava que ele, se não morresse logo, fosse diferente
mesmo. Afinal, tinha nascido muitas horas após o rompimento da bolsa — assim diziam
as comadres — e até o Dr. Vilela, logo após o parto, no dia 10 de outubro de
1984, pressentia algum tipo de problema: “Vamos ver o que vai acontecer...”.
Mas o menino, filho de José
Humberto de Matos Moreira e Neusa Carmo Gonçalves, sobreviveu e acabou
crescendo na Fazenda Coqueiro, criado pelos avós paternos.
As esquisitices começaram mesmo
quando André desandou a ler antes de completar cinco anos e não parou mais. Encantado
com a descoberta das formas das letras, seus desenhos e significados, passou a
devorar livros e revistas com mais apetite do que para mingau de aveia. E não
havia cristão que o distraísse enquanto estava lendo — nem uma promessa de
bicicleta nova ou de caminhãozinho basculante. Tampouco um pedação de rapadura
com queijo fresco dava conta do recado. Até que um dia, na cidade, André
descobriu outra paixão que deixou os livros em segundo plano.
Era uma sala, na casa de Eliane
Freitas de Alencar, em um final de tarde. André, impecável em sua roupa de
passeio, se distraía com uma revista quase de seu tamanho enquanto sua avó
Clarinda, que o levara consigo, conversava com algumas amigas. De repente, um
som nunca antes ouvido o deixou paralisado. E ele me contou, com detalhes: “Eu
tinha quatro anos de idade e uma centelha me atingiu. Somente hoje eu sei
explicar o que senti. Foi como se uma corrente elétrica tivesse me atravessado.
Eu nunca tinha escutado nada parecido. E tampouco entendia de onde saía aquele
som. Havia um piano na sala, todos estavam em silêncio e a Eliane o tocava. Mas
eu nem fazia ideia de que a música vinha do piano. Aquele som foi
inesquecível... E uma certeza naquele momento tomou conta de mim: ‘É isso que
quero fazer!’, decidi”.
E o menino levou a sério sua
decisão. Alguns meses depois, no aniversário de cinco anos, bateu pé e não
deixou a moça da loja embrulhar aquele imenso carro de bombeiros que a avó escolhera
para lhe dar. Pediu um piano! E a avó o atendeu, com o único então disponível:
um pianinho de brinquedo.
André tanto tocou e tanto
pediu, que a avó Clarinda cedeu: levou-o para ter umas aulas de piano com a
professora Iza. E ele logo começou a ler partituras, sem nem saber como.
Impressionada com a aptidão do neto, Dona Clarinda o encaminhou para estudar
piano clássico com a professora Eliane, a mesma que lhe apresentara o som que o
eletrizara alguns meses antes.
A partir daí a história é de
uma dedicação espartana. André passou a adolescência estudando prazerosamente,
fazendo exatamente o que descobriu que queria fazer, com o incentivo da avó. Assim,
concluiu o curso de nível técnico em piano, em Campo Grande , e
ganhou o tão desejado presente, agora de gente grande: um piano... digital. Ainda
residindo em sua terra natal, Dourados, MS, outros interesses afloraram e ele
apaixonou-se, quase casou. Foi sua primeira desilusão amorosa. A tristeza o
levou a outras plagas. Foi para Goiás (mas felizmente não formou uma dupla
caipira...). Ali trabalhou em um conservatório e começou a firmar-se como
pianista, junto com um preparador vocal. Quando deu por si, já estava
produzindo arranjos, compondo e dirigindo gravações. Estudou durante quatro
anos no Conservatório de Goiás, enquanto ministrava aulas de piano em Goianésia
e Goiânia e dirigia um coro vocal em Ceres.
Voltou a Dourados e tornou-se pianista
auxiliar na Igreja Presbiteriana do Brasil – a
“igreja do relógio”. Em 2008 dedicou-se a um curso de afinação e
restauração de piano, em
Campo Grande , com Albino Ferraz. Em seguida sua avó teve diagnóstico
de câncer e André decidiu permanecer em Dourados. Hoje ele
tem a alegria de acompanhá-la, curada, enquanto ensina piano, estuda e compõe, além
de ser pianista e regente do coral da igreja do relógio. E, graças a Deus,
continua sendo um “cara esquisito”, daqueles que ficam horas e horas ao piano,
ou imerso em leituras.
Pois é... Dizem que avós
estragam os netos. Neste caso, Dona Clarinda, todos na cidade estão lhe agradecendo.
Que belíssimo “estrago” a senhora fez!
E hoje, sábado, dia 27 de
outubro de 2012, você tem a oportunidade de conhecer André Matos Moreira
pessoalmente. Ele tocará em um concerto beneficente no Teatro Municipal de
Dourados, às 19h. A renda será revertida para o GAAD-Acolher – Grupo de Apoio à
Adoção de Dourados. Os ingressos estão à venda na Update – 3422-0300 – e na
Livraria Canto das Letras – 3427-0203.
Que sorte a nossa! Eu não vou
perder esse concerto.