Na edição de hoje
do Observatório da Imprensa, na Seção
TV EM QUESTÃO, o jornalista Antonio Brasil comenta (e conecta) dois recentes
eventos: a criação do site Internet
Archive e a liberação de verba para obras na Biblioteca Nacional. Vale ler
para pensar, e conversar, sobre nossas questões com prioridades e a memória
nacional:
MEMÓRIA & HISTÓRIA
Telejornais na
Biblioteca Nacional
Por
Antonio Brasil em 2/10/2012 na edição 714 do Observatório da Imprensa
Esta semana, duas matérias sobre arquivos jornalísticos,
internet e bibliotecas me chamara a atenção. Gostaria de fazer uma conexão
entre enfoques totalmente diversos para a solução do mesmo problema:
preservação e acesso a documentos históricos.
A primeira matéria, “Site
reúne todas as notícias de TV desde 2009”, descreve, neste Observatório,
proposta inovadora de um norte-americano, Brewster Kahle. Ele utiliza a
internet para preservar informações e dados importantes disponíveis na rede
ameaçados de desaparecer no futuro:
“Inspirado numa referência da Antiguidade, a Biblioteca de
Alexandria, Brewster Kahle tem uma visão majestosa do gigante agregador e
digitalizador de informações Internet Archive
que fundou e dirige... Queremos coletar todos os livros, músicas e vídeos que
tenham sido produzidos por humanos ao longo do tempo”.
Em relação ao telejornalismo, o projeto tem uma proposta ainda
mais ousada, que pode mudar de forma radical a maneira como assistimos e
pesquisamos os noticiários de TV:
“...a coleção online do arquivo irá incluir todos os trechos de
notícias produzidos nos últimos três anos por 20 canais diferentes dos EUA,
abrangendo mais de mil noticiários que resultaram em mais de 350 mil programas
distintos de informação... O Internet Archive vem gravando lentamente material
de informação desses veículos, o que significa coletar não apenas todas as
edições de 60 Minutes na CBS, mas
também cada minuto, todos os dias, da CNN”.
No entanto, a questão mais importante e relevante desta matéria,
para nós brasileiros, é a forma de financiamento da proposta:
“O projeto para noticiários de TV, como seus outros projetos
para o arquivo, é basicamente financiado por bolsas, embora inicialmente Kahle
tenha posto seu próprio dinheiro”
Seu próprio dinheiro? Somente este trecho já seria considerado
inusitado e surpreendente para todos nós. Por aqui, sempre aguardamos e
exigimos verbas do governo para tudo, inclusive para a implantação de ideias
inovadoras ou restauração de prédios históricos.
Mas Kahle faz questão de acrescentar que seu projeto também
conta com apoio de verbas públicas:
“...bolsas dos Arquivos Nacionais, da Biblioteca do Congresso e
de outras agências governamentais que respondem pela maior parte do projeto...
o orçamento anual do projeto que gira em torno de US$ 12 milhões (cerca de R$
24 milhões) e emprega 150 pessoas”.
Como? Somente R$ 24 milhões e 150 pessoas para garantir a
preservação e o acesso público e gratuito aos telejornais norte-americano
utilizando a internet? No mínimo, intrigante.
Por último, Kahle revela a proposta final e muito ambiciosa do
projeto:
“Por maior que seja esta coleta de informações jornalísticas é
apenas o começo. O plano é voltar, ano a ano, e lentamente adicionar vídeos de
notícias até o início da televisão”.
Hemeroteca
Agora, vamos citar a outra matéria publicada em O Globo ,sobre
a Biblioteca Nacional: “Marta anuncia R$ 70 milhões para Biblioteca Nacional”:
“Em sua primeira visita oficial ao Rio como ministra da Cultura,
Marta Suplicy anunciou um pacote de R$ 70 milhões para a Biblioteca Nacional. A
verba será usada para obras de engenharia e restauração no prédio sede, no
Centro, e no anexo, na Zona Portuária, onde será implantada a futura Hemeroteca
Brasileira”.
Até aqui, tudo bem. Caso você tenha dúvidas sobre o que seja uma
hemeroteca, explicamos com auxílio do Dicionário Michaelis. Trata-se de
“lugar onde se arquivam jornais e outras publicações periódicas”.
Talvez os “telejornais brasileiros” sejam finalmente
considerados “jornais” ou “publicações periódicas” pela Biblioteca Nacional.
Talvez a futura Hemeroteca da Biblioteca Nacional possa preservar os nossos
telejornais.
Mais adiante, o texto do Globo parece indicar que a prioridade,
no entanto, será a “preservação do prédio histórico da Biblioteca Nacional”:
“Desde os anos 1980,
a Biblioteca não recebia uma grande reforma. Em 60 dias,
está previsto o início do restauro do telhado, das claraboias e dos vitrais,
além da troca dos elevadores dos armazéns da sede e da primeira etapa da
reforma do anexo. Na semana que vem, haverá edital para recondicionamento dos
banheiros, manutenção da sede, entre outras obras, e para o projeto da
Hemeroteca.”
Perceberam a conexão?
Só depois de “recondicionamento dos banheiros, manutenção da
sede, entre outras obras” é que a nova administração pensará no futuro digital
da Biblioteca Nacional. Ou seja, na instalação da tal hemeroteca – “lugar onde
se arquivam jornais e outras publicações periódicas”.
Em verdade, só o futuro vai garantir os projetos da BN e a
permanência da ministra no governo. Se sobrarem verbas, e dependendo de
delicadas negociações com os donos das emissoras brasileiras, talvez, um dia,
lembrem-se dos telejornais.
Nada contra gastar milhões na preservação de um belo prédio
centenário e histórico. Afinal, a última reforma foi realizada em 1980, segundo
O Globo.
No mundo ideal, deveríamos ter recursos para preservação das nossas “pirâmides”
e para investir na multiplicação dos acervos. Mas a questão principal é decidir
pelas “prioridades”.
Mas a proposta do presente artigo não é tratar de construção ou
reformas de prédios públicos. É, sim, discutir uma questão importante e
relevante: em pleno século 21, para que serve uma Biblioteca Nacional? Como
utilizar as novas tecnologias para preservar e garantir acesso a documentos
históricos fundamentais, como os noticiários de TV?
Gostaria, então, de discutir duas propostas diversas para
investir dinheiro público. De um lado, temos a opção pelo investimento em
“pirâmides”: grandes obras que se tornam patrimônio público e garantem
dividendos políticos para os nossos gestores, os “faraós modernos”. Afinal, no
passado utilizamos grandes somas de recursos públicos para a construção de
novíssima capital federal, em Brasília, da gigantesca “Cidade da Música”, no
Rio de Janeiro, e hoje investimos milhões em estádios de futebol em todo o
Brasil. São as nossas “pirâmides” modernas. Nada contra. Todas essas obras ou
reformas podem ser facilmente justificadas. A questão é decidir as prioridades.
De outro lado, temos a opção de investir na consolidação de
ideias ou inovações. Colocar dinheiro público em acervos digitais na internet
que preservem a nossa história do futuro, por exemplo.
Investir recursos públicos em obras faraônicas é melhor e mais
justificável do que investir em ideias inovadoras? Vocês decidem.
Mentiras
Há muitos anos tenho me dedicado a lutar pelo livre acesso aos
arquivos de telejornais brasileiros. Tem sido um luta solitária e inglória.
Pelo jeito, poucos demonstram interesse para enfrentar as resistências das
emissoras de TV brasileiras que guardam esses documentos históricos.
Ao contrário do acesso livre a documentos históricos – como
jornais impressos preservados em nossas bibliotecas públicas –, caso você
queira consultar os noticiários brasileiros do passado é necessário enfrentar
uma verdadeira via
crucis de entraves burocráticos e dificuldades técnicas. As
decisões sobre o acesso aos telejornais são tomadas por poucos, com critérios
indefinidos e nebulosos. É preciso ter muita persistência. O acesso é
concretizado somente após longas averiguações, que incluem os propósitos das
pesquisas.
Seria o equivalente a justificar o empréstimo de um livro em uma
biblioteca qualquer.
Tente fazer, por exemplo, uma pesquisa sobre a participação ou
omissão de determinada rede de televisão durante os primórdios da maior
mobilização popular da história recente do país, o movimento pelas Diretas Já e
veja os resultados.
O jornalista Mario Sergio Conti tentou. Em outubro de 2003,
durante um embate público com o jornalista Ali Kamel, diretor de jornalismo da
Rede Globo, ele relatou as dificuldades para ter acesso ao acervo da emissora (ver
aqui):
“Você acusa todos que criticaram a cobertura do Jornal Nacional daquele
comício de não terem feito a pesquisa necessária: ‘Bastava uma visita ao Centro
de Documentação da TV Globo, onde todas as reportagens estão arquivadas, para
que acusações tão graves simplesmente não existissem’. Perfeito. Mas eu fui,
diversas vezes, ao Centro de Documentação da Globo quando fiz a pesquisa para Notícias do Planalto.
E pedi a fita do JN de 24 de janeiro de 1984. As fitas daquele ano,
explicaram-me, foram gravadas no sistema X, e estavam em processo de
transcodificação para o sistema Y. Pedi para ver aquele telejornal específico
lá mesmo, numa máquina qualquer, da maneira que fosse. Não dava, foi a
resposta. Ao longo de quase dois anos de trabalho no livro, de vez em quando
telefonava para o Centro de Documentação e perguntava se dava para ver o raio
do JN do
comício das diretas na Praça da Sé. Nunca deu.”
Perceberam a importância dos arquivos de telejornais para que
outros pesquisadores possam escrever ou reescrever a história recente de nosso
país?
Mario Conti não teria qualquer problema para suas pesquisas
sobre questão tão importante e relevante caso a Biblioteca Nacional se
preocupasse com a preservação de seu prédio histórico e centenário, mas também
dedicasse recursos para a preservação e difusão dos telejornais brasileiros do
presente e do passado.
O caminho indicado pelo projeto Internet Archive, com a
utilização das novas tecnologias, podem ajudar a resolver o problema de acesso
aos nossos telejornais. Afinal, como costumo advertir, “o acesso livre à nossa
memória televisiva é questão fundamental e estratégica para a preservação da
história e da democracia no Brasil. Neles, talvez jamais encontremos a
‘verdade’, mas certamente evitaremos a divulgação de mentiras” (ver “Pelo
livre acesso aos arquivos de telejornais”).
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[Antonio Brasil é jornalista e professor da Universidade Federal
de Santa Catarina]
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Imagem e texto clipados do Observatório da Imprensa: