Sabe quando acontecem coisas
que você não sabe explicar? Pois é. Foi assim comigo e com o pianista André
Matos Moreira. Era um final de tarde, há pouco mais de um ano, na livraria
Canto das Letras. Eu conversava com amigos e ele escolhia um livro ao lado.
Começamos a falar de família e ele se aproximou. Descobrimos que éramos douradenses
e parentes distantes, primos em algum grau — seu trisavô era meu bisavô. Foi
divertido. Cada um falou de si com a maior desenvoltura, rimos dos rumos que
nossas vidas haviam tomado e percebemos que tínhamos muito em comum, apesar de
um ignorar totalmente a existência do outro até alguns minutos antes.
Dessa empatia surgiu uma grande
amizade e a sensação de que eu conhecia André há décadas. Um dia, em meados de
junho, ele apareceu com a ideia de organizar um recital de piano. De pronto foi
como se a proposta fosse minha e, como tal, decidi promovê-lo na forma de um
concerto beneficente. Um mergulho em águas desconhecidas, às cegas. Errei, acertei
e aprendi muito. E o André trabalhou e estudou, incansavelmente. Foram meses de
cuidados minuciosos para nada dar errado, enquanto ele ensaiava, horas a fio,
as peças musicais para o evento.
Escolhemos o Teatro Municipal
de Dourados para o concerto e nos preparamos para atrair um público que sentíamos
que existia, mas cujo seu exato paradeiro desconhecíamos. A mídia nos ajudou
muito na divulgação, tanto a TV Morena quanto os canais locais (Gran Dourados e
Boa Vida) e, em especial, o jornal O Progresso. Mas, apesar de toda a
publicidade, estávamos apreensivos. Muitos recitais que professores de piano e
seus alunos ofereciam gratuitamente garantiam a audiência com as respectivas
famílias. A cidade já havia lotado uma praça pública para ouvir Arthur Moreira
Lima ao piano – um evento de entrada livre, absolutamente informal, com
pipoqueiros e crianças correndo. Em nosso caso o ingresso era pago, em um
ambiente fechado e “formal”, para ouvir piano em um sábado à noite, em uma
cidade que respira música sertaneja. Haveria público? Como se não bastassem
todas as dúvidas, as pessoas não se decidiam a comprar os ingressos, apesar do
valor de R$ 20,00 (com meia entrada por R$ 10,00): “Depois...”, “Vou ver quem
vai comigo”, “Deixa pra semana que vem!”.
E... chegou o dia: sábado, 27
de outubro de 2012. No final da tarde fiquei conhecendo Gabriela
Porazzi, a aluna de André que tocaria algumas peças com ele. Confiante, fui
logo perguntando quantos ingressos ela havia vendido. “Cinco!”. Eu não sabia se
ria ou se gritava. O piano precisava ser afinado. O afinador atrasou-se mais de
duas horas e, no exato momento de começar o concerto, a sala ecoava com...
plim! plim! plim! O afinador, o melhor do estado, fazendo seu conserto! Dos
bastidores, ouvindo aquele som irritante, eu transpirava em bicas e fuzilava o
afinador com o olhar. Foi quando um burburinho, cada vez mais intenso, começou
a abafar os toques ao piano. Através de uma providencial fenda lateral da
cortina, presenciei o teatro se enchendo. Uaaau!
O plim-plim finalmente aquietou-se
e quase carreguei o afinador palco abaixo, agradecendo, dando-lhe água e
mostrando-lhe as escadas para que se acomodasse na plateia. Incrédula, ainda
precisei aguardar alguns ajustes técnicos dos profissionais que contratei para
as filmagens. Corri então a apresentar o André e... alguém havia desconectado o
microfone. Fiz minha parte, quase aos gritos. E assim, no último instante, os
gastos, a dedicação e o planejamento de meses quase vão água abaixo e tudo fica
com aparência de relaxo e improviso, graças a profissionais não tão
profissionais. Mas a música superou plenamente o que o público possivelmente
considerou como “imprevistos”.
Teatro lotado, luzes apagadas,
com um facho somente sobre o piano. As notas surgem, límpidas, perfeitas. E uma
atmosfera densa e mágica começa a descer sobre a plateia. Fechei os olhos e
deixei-me levar por Johann Sebastian Bach. Que concerto! E que público elegante
e educado. Um silêncio reverencial e aplausos calorosos, exatamente como André
Matos Moreira e Gabriela Porazzi mereceram.
No final do espetáculo, não
tive dúvidas. Dourados estava mostrando seu atestado de maturidade — espaço,
respeito e público para um recital de piano. Coisa de gente grande. Coisa de uma
cidade que hoje acolhe manifestações culturais dos mais diferentes tipos e
tendências. Que coisa boa! Fiquei orgulhosa de minha cidade natal.
Para finalizar e coroar a
proposta beneficente do concerto, o GAAD-Acolher — Grupo de Apoio à Adoção de
Dourados — já recebeu o montante arrecadado com a bilheteria. Possivelmente um
valor quase simbólico perante as necessidades do Grupo, mas, com certeza, uma
doação milionária de carinho. Sinto intimamente que cada centavo doado está
impregnado pela magia da música. Uma magia emanada por quem saiu de casa à
noite para ouvi-la e compartilhá-la. Um afago. Simples assim!