SAÚDE E BELEZA
Jornalismo com contraindicação nas revistas femininas
Por Roxana Tabakman em
16/07/2013 na edição 755 do Observatório
da Imprensa
Na capa, uma chamada
atraiu os meus olhos: “Células-Tronco - As novidades para deixar o rosto jovem
em minutos”. Como nasci mulher e loira, ou seja, sou geneticamente incapaz de
ter senso crítico, e além de tudo os 50 anos estão mais perto do que longe e
sei que o Photoshop não presta para o dia a dia, fui direto à matéria.
Maravilha! As células-tronco prometem corrigir tudo! Leio: “devolver à pele o
viço, elasticidade e corrigir defeitos da idade”. Também vou guardar a revista
para minha filha adolescente, porque – segundo o artigo “Células-tronco para uma pele jovem”, da revista Corpo a Corpo (Editora Escala) – a
injeção também melhora as cicatrizes da acne e outros defeitos da pele. Na
visão sobre o assunto oferecida pela repórter que entrevistou a dermatologista
Dayse D’Ávila, o método é simples e seguro.
Porém, mulheres,
alguém tem que contar como é a realidade, mesmo que seja ruim. O que diz a matéria
não é tudo verdade. Especialmente a última palavra: seguro.
Deixo para os
estudiosos da comunicação avaliar a peça jornalística pelo Index of Scientific
Quality (Índice de Qualidade Científica) e dar um resultado entre um (baixa
qualidade) e cinco (alta qualidade). Para isso, eles terão que medir o grau de
clareza do texto em relação a seu público-alvo, a distinção clara entre
opiniões e informações, o nível de evidência e credibilidade das fontes
utilizadas, o fundamento em relação a suas afirmações e ter comprovado que
apresenta claramente os benefícios e riscos.
Porém, como o que
melhor sabemos fazer os jornalistas é contar histórias verdadeiras, vou contar
uma, publicada na Scientific
American, que vai ajudar os leitores a dar o seu veredicto.
Era uma vez uma mulher
que chegou numa luxuosa clínica estética da Califórnia, The Morrow Institute,
reclamando que não conseguia abrir o olho direito. Quando o médico pediu para
ela tentar, ela reclamou de dor. Alem do grito, do corpo da mulher saiu outro
som, como se fosse uma música rítmica, feita com castanholas. O cirurgião,
Allan Wu, convidou-a logo para ir ao centro cirúrgico. O que ele achou ao
cortar a pele, entre a sobrancelha e o olho, ninguém esperava.
As pinças cirúrgicas
começaram a extrair pedaços de osso, um depois de outro... demoraram seis horas
para acabar. O inexplicável era que os ossos estavam isolados, e o crânio não
tinha nenhuma fratura. Um enigma para a ciência? Não por muito tempo. A
resposta estava no prontuário.
Três meses antes, a
mulher tinha recebido – em troca de 20 mil dólares – injeções de células-tronco
em uma clínica de Beverly Hills. Como na técnica recomendada na matéria
brasileira, as células tinham sido obtidas da própria gordura da paciente, da
região abdominal. A única diferença é que as células-tronco foram colocadas
junto a um material de recheio clássico, que contém um mineral (hidroxiapatita
de cálcio). O procedimento médico tinha dado bons resultados estéticos. O
problema estava na natureza.
O que aconteceu foi
que as células-tronco (que em condições normais não estariam lá) aproveitaram o
mineral disponível (que se não fosse pelo procedimento estético também não
estaria lá) para construir pedaços de osso (que, logicamente, não deveria
crescer ali). Ou seja, tendo os elementos, a natureza simplesmente atuou
segundo as suas próprias e conhecidas regras. Pena que não era o que a mulher
esperava.
As células vivas não
são um remédio como qualquer outro. Células-tronco são celebres porque podem se
transformar em diversos tipos de tecido. Isto tem sido obtido em laboratório e,
em alguns casos como o relatado, no corpo dos pacientes. O lado B desta terapia
biológica é que as células-tronco podem diferenciar-se em tecidos que não sejam
os desejados, podem crescer de forma pouco controlável, podem gerar cartilagem,
osso, ou outros tipos celulares, sem que se possa controlar a quantidade e o
formato. É por isso, justamente, que ainda não estão permitidas na prática
médica. Porque ainda há muita insegurança no processo, não pelos resultados
estéticos.
A história relatada
começa no ano de 2009. E acaba? Ninguém sabe. As células-tronco ainda estão lá.
“Pode acontecer de novo”, advertiram à paciente arrependida. Paradoxos dos
tratamentos biológicos: têm uma aura de saudáveis que nem sempre tem
correspondência com a realidade.
Da história americana
há muitas leituras, entre elas a de que terapias com células-tronco
potencialmente perigosas se oferecem como tratamento de beleza até nos países
mais sérios. No Brasil, é sabido que há profissionais oferecendo tratamentos
com células-tronco sem ter havido sequer consenso sobre sua validade prática.
E, afinal de contas, não é aceito pelas autoridades de saúde. Os pacientes
podem cair na armadilha por pensar que, se um tratamento é oferecido em um
consultório bonito, e o profissional até der um recibo pelo pagamento, é
evidente que se trata de uma prática legal. Porém, no Brasil, como em muitos
países, não há uma lista de procedimentos permitidos ou proibidos, e todos são
cientes disso: falta fiscalização para impedir a comercialização de terapias
não comprovadas. (Voltando ao caso americano, qualquer médico no Brasil pode
colocar as células-tronco junto ao mineral, como no exemplo dado, porque não há
um método único recomendado pelas associações profissionais).
Um paciente pode ser
enganado por um médico que desrespeita as regras. O jornalista não pode, ele é
responsável pelo que publica. A imprensa generalista pode não saber de tudo,
mas tem que saber entrevistar. A resposta da pergunta certa para esta matéria é
que a única terapia com células-tronco comprovada e aprovada no mundo para uso
em humanos é o transplante de medula óssea. O resto é experimental. O que
significa? Muitas coisas; entre elas, por exemplo, que não há garantias. E que
se alguém fizer, tem que ser gratuita.
Entre nós
Todas as revistas
femininas dedicam a maioria das suas páginas – excetuando moda – a assuntos
relacionados à saúde. O interesse das leitoras pela medicina não é mais do que
um reflexo de uma mudança de atitude na qual os pacientes se encarregam de sua
própria saúde e buscam informações em todas as fontes possíveis. As mulheres
ainda mais, responsáveis pela saúde de varias gerações da família.
O contato entre a
mídia e as vozes especialistas é, por sua vez, cada vez mais fluido, facilitado
pelas assessorias de imprensa cada vez mais populares no setor médico. Porém,
em muitos casos, a busca midiática responde a razões de estratégia de marketing
pessoal. A ingenuidade ou falta de capacitação de alguns jornalistas, somada às
pressões de diferentes origens, pode fazer estragos.
É lamentável que, na
busca pelo apelativo, muitas vezes se esqueça de que o essencial deveria continuar
sendo a qualidade da informação, ainda mais quando pode haver consequências
gravíssimas como é o caso dos artigos de conteúdo médico. As notícias sobre
dietas, por exemplo, deveriam ser tratadas com o rigor imposto à prescrição de
um tratamento para obesidade. Não é o que acontece. Em geral, as dietas
publicadas oferecem a metade dos minerais necessários, falta a elas cálcio e
ferro, e têm menos vitaminas do que o adequado para o funcionamento correto do
organismo [ver aqui].
Em conclusão, o boom informativo sobre medicina pode
ter efeitos contraproducentes se à quantidade não forem incorporadas doses
crescentes de qualidade. Na mesma edição da matéria das células-tronco há, dez
páginas depois, outra matéria de título autoexplicativo “Bisturi, aí vou”.
Esta, como é devido, tem dentro de um box um texto menor, porém de titulo
acertado: “Todo cuidado é pouco”.
Nas primeiras páginas da
mesma revista, há um espaço fixo que se chama Entrenós. Claramente, é uma conversa amigável, íntima, com
as leitoras. Nós é uma
referencia às outras mulheres.
Gostaria de ter uma
conversa assim com os jornalistas que fazem as matérias de saúde nas revistas
femininas. Ou talvez não seja necessário, não acho palavras melhores para dizer
do que as que a editora Karine César colocou naquele Entrenós para suas leitoras:
“Basta um comentário
colocado de forma equivocada para que toda nossa segurança vá por água abaixo.
Leva muito tempo para percebermos que um mundo cheio de regras e julgamento
serve para nos nortear e motivar... Mas não pode nunca nos paralisar”.
É assim mesmo. As
matérias de medicina das revistas femininas fazem muita diferença na vida das leitoras
e suas famílias. É preciso apenas tentar fazê-las cada dia melhor. É fácil: em
saúde, geralmente isso se alcança com o respeito a algumas regras.
***
Roxana Tabakman é bióloga e jornalista, autora de A saúde na mídia: medicina para jornalistas, jornalismo
para médicos (lançamento previsto da edição em português para
setembro de 2013, pela Editora Summus)