Há meses que trabalho nele, planejando, organizando,
encomendando mudas e plantando. Uma jabuticabeira, dezenas de chuvas-de-ouro
fixadas em uma antiga mangueira, canteiros de alecrim, lavanda e amendoinzinho,
além de duas árvores para colher pitangas e acerolas. Um jardim feito com e
para os sentidos: para olhar, tocar, colher, cheirar, comer. Mas sempre faltava
um pé de alguma coisa, cobertura para algum canteiro, uma muda pra
transplantar... E hoje, ao sentir o aroma do alecrim e me alegrar com os primeiros
botões da alamanda amarela, decidi que o jardim estava pronto. Foi então que encontrei
um joão-de-barro caído, agonizante sobre o gramado. Um calafrio me percorreu e
pensei, com tristeza profunda: “O poeta está partindo...”. Ontem mesmo eu havia
conversado com amigos sobre sua hospitalização e a fragilidade de sua saúde.
A tristeza não me atingiu em vão. Manoel de Barros foi
embora e deixou órfãos incontáveis: borboletas, pedras, sapos, árvores, lesmas,
jabutis, pássaros, rios e até o vento. Nem o cachorro Ramela escapou. Ficamos todos
à deriva, buscando terra firme, sem asas, com ramos caídos, pernas e patas sem
chão.
Faz muito tempo que nos conhecemos, e no começo achei
muito esquisitas aquelas suas palavras, à primeira vista tão sem pé nem cabeça
— como se a alguma delas faltasse cabeça ou pé. E então, baixando a guarda e
deixando-me contaminar por suas invencionices, fui abduzida em 1985. A nave alienígena foi
um livro seu. Na época, coordenando um grupo de pesquisa na UFMS, estudávamos sobre
biodiversidade de plantas aquáticas e sua fauna associada. E eu passava a vida
envolvida com questões a serem respondidas sobre padrões e processos
reguladores, com planilhas, análises estatísticas e uma parafernália de teorias
e hipóteses sobre a diversidade biológica no Pantanal. Foi quando li em seu
“Livro de pré-coisas” que “no Pantanal
ninguém pode passar régua. Sobremuito quando chove. A régua é existidura de
limite. E o Pantanal não tem limites” — e uma revelação me atingiu como um
raio. Eu era uma besta! Tanto trabalho, tanta pesquisa, e o poeta matava a
questão a pau, nua e crua. Nunca mais fui a mesma.
Hoje não tem mais jeito; vou deixar a tristeza me
derrubar. Mas amanhã, prometo, vou dançar de cabelos soltos no jardim, dando
bom dia às lesmas e beija-flores, celebrando a alegria de ter em mãos (a ao
alcance de minha compreensão) poemas como os seus.
Obrigada, Manoel de Barros!
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FONTE DA IMAGEM – O poeta Manoel de Barros – página de
divulgação do Facebook.