sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

E ainda estamos em janeiro!

 

Não sei se é somente impressão ou se há um clima de intranquilidade, com algo estranho e pesado no ar. A sensação é de que faz um tempão que o ano começou. Nem dá pra acreditar que mal e mal se foram duas semanas somente. E, para piorar minhas caraminholas premonitórias, uma avalanche de acontecimentos está soterrando as expectativas de um feliz 2015.

Nas primeiras horas do dia primeiro, um acidente enlutou uma das famílias que estava na festa em que celebrávamos o ano novo. Uma daquelas tragédias que deixam marcas para sempre. E as fatalidades continuaram... Sem tantas dores e tristezas, mas com contato direto com uma das piores faces humanas — a hipocrisia —, fui envolvida em um desgastante caso de furto, que se arrastou por dias, até que a ladra caiu em uma armadilha e foi pega em flagrante, abandonando rapidamente a prova envolta em um pano de limpeza, sujo. Uma irônica analogia ao ato. Assistir ao desenrolar da farsa, ao abuso da confiança de uma idosa, e ver o cinismo final, com cena de choro ensaiado, me deixou com um estranho gosto de fel na garganta, talvez pela vontade, reprimida, de xingar a simpaticíssima e gentil pessoa que se revelou tão cínica e perigosa em poucos dias. Que começo de ano!

Como se não bastassem os maus augúrios dos acontecimentos locais, o mundo ficou muito mais sujo e mal-humorado no último dia 7, com o brutal assassinato de 12 pessoas no atentado ao jornal satírico “Charlie Hebdo”, em Paris. Não há justificativa, sagrada ou profana, de forma alguma, mas me pareceu um ato há muito tempo anunciado. Afinal, radicais, descrevam-se eles como religiosos ou não, são radicais! E nunca vi um radical ter bom humor e tampouco, principalmente tampouco, rir de si mesmo.

Voltei no tempo e reli um irretocável artigo, intitulado “Qual é a graça? Um manifesto”, que o jornalista Alberto Dines publicou no “Observatório da Imprensa” em 25 de setembro de 2012. Aqui vão alguns trechos:

“O homem é o único animal que ri e este particularismo faz do humor um tema da maior seriedade. Sócrates, São Tomás de Aquino, Immanuel Kant debruçaram-se sobre as diferentes formas de humor, mas Sigmund Freud parece ter encontrado a melhor interpretação — ou, pelo menos, a mais política — ao constatar que o riso é resultado da remoção de uma censura interna. Alívio.

O riso é libertário. Impossível suprimi-lo, sufocá-lo. Graças ao riso o rei infalível aparece nu, inexpugnáveis muralhas mostram-se feitas de barro e vilões mal-encarados ficam ridículos sentados na privada. Comédias derrubaram déspotas ainda no império romano, sátiras desarmaram a ignorância da Inquisição portuguesa, os pequenos pasquins do Renascimento sugeriram piadas que de outra forma não poderiam ser engendradas. [...]

Caricatura vem do italiano ‘caricare’, carregar, exagerar, buscar o grotesco; charge vem do francês, charger’, forçar; cartum vem do inglês,cartoon’, cartão, onde se fazem desenhos humorísticos. O Ocidente fez do riso uma arma a um tempo destruidora e enriquecedora, agressiva e benfazeja, ponte e ruptura.”

E assim, de charge em charge, chegamos a 2015 e ao massacre do último dia 7. E novamente Alberto Dines me chamou a atenção no “Observatório da Imprensa”, em um artigo publicado cinco dias depois do atentado: “Por quem os sinos dobram, cara-pálida?”. Veja por quem:

“Os sinos dobram pelos caídos em defesa do laicismo, contra a chantagem fundamentalista e a barbárie das guerras santas.

Quase quatro milhões de franceses foram no domingo (11/1) às ruas do país — num espetáculo emocionante pelas dimensões, pela serenidade e simplicidade — para se identificar com o projeto na qual se engajou o ‘Charlie Hebdo’ nos últimos anos: ‘Penso, logo me manifesto’. Ou esperneio. Ou chuto o pau da barraca. Este é o mandamento elementar do cartesianismo jornalístico. O resto é diletantismo, conversa fiada, frivolidade.

Jornalistas resistem contra as forças que os oprimem diretamente e não dão trégua àqueles que rondam as redações para silenciá-los.

E quem ameaçava os ‘Charlies’ massacrados na quarta-feira (7/1) — o governo francês, a liga neofascista europeia, o imperialismo ianque, a máfia russa, o narcotráfico internacional?

Não há o que discutir: as kalashnikovs foram acionadas dezessete vezes entre quarta e sexta-feira nas ruas de Paris em nome do fanatismo e do fundamentalismo religioso.

Os ‘Charlies’ franceses foram longe demais? Problema dos que não querem se incomodar, os não-me-importistas de sempre. Se no hemisfério democrático há jornalistas que recusam ser Charlie, lamentam a matança, mas denunciam as vítimas como incendiários, blasfemos e obscenos, é um direito que a democracia oferece aos que preferem ver o mundo em cima do muro. [...]

Intransigência na França não é defeito, é atributo. ‘Je suis Charlie’ não é apenas uma casual defesa da liberdade da expressão: é um compromisso com a memória coletiva do primeiro país a separar com o necessário rigor e intransigência a Igreja (= religião) do Estado. [...]”

E cá estamos, assistindo ao maior show recente do fanatismo religioso e seu enorme sucesso. Afinal, o que interessa ao terrorismo senão a divulgação de seus atos? Mas a publicidade é relativa... Fiquei impressionada ao ler um editorial da “Folha de S. Paulo” de terça-feira (13/1):

“Terror na Nigéria — Passou quase despercebido, na semana passada, um massacre de proporções catastróficas ocorrido em Baga, cidade no nordeste da Nigéria. Autoridades locais afirmam ter desistido de contar os corpos, e por essa razão não se sabe ao certo quantos são os mortos. Segundo estimativas da Anistia Internacional, seriam cerca de 2.000. Foram todos chacinados por fanáticos da milícia islâmica Boko Haram [...]”.

E aqui fica uma incômoda sensação: Por que “passou quase despercebido”? Por que a mídia não noticiou esse massacre na África com o mesmo alarde do atentado de Paris?  


Com o estômago embrulhado, relembro que o ano mal começou. E mau começou.
 

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