sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

Por que somos ou não somos obesos? Essa é a questão.


Meus avós amavam uma criança rechonchuda. Apertavam-lhe as bochechas e comentavam: “Ela está ven-den-do saúde!”. Era um grande elogio. Os pais, orgulhosos, agradeciam. A avó de um amigo dizia “gordura é formosura” e, não podemos esquecer, havia concursos nacionais de robustez infantil. Acho que se elogiava a gordura, sim. Depois de séculos de fome e duas guerras mundiais, era sinônimo de vida. Era o reconhecimento de que havia fartura e boa mesa na família. Se bem que sou tentada a acreditar que meus avós não estavam meramente elogiando a rechonchudez. Afinal, todos sabiam que a criança estava em crescimento e que não lhe faltariam oportunidades para gastar, e muito, toda aquela energia tão roliçamente acumulada. Com certeza eram outros tempos, com ruas largas e livres para correr, árvores para subir, enxurradas para deslizar, quintais para se esconder e toda a vizinhança para explorar.

Passei minha infância assim, como um azougue. E talvez por isso, e por ter sido muito “arteira”, não fui uma criança obesa. Ao contrário, era tão magra (para os padrões familiares) que passei por poucas e boas, tomando insuportáveis colheradas diárias de Emulsão de Scott (feita com óleo de fígado de bacalhau), que, nos anos 50, não maquiada com sabores laranja ou morango, tinha gosto de... óleo de fígado de bacalhau. E era rigorosamente receitada pelo médico da família para evitar desnutrição e auxiliar a assimilação de vitaminas. Sem saber como nem por que, mantive-me magra. Mas cheguei à adolescência, os hormônios mudaram, minha tireoide entrou em disfunção e comecei a substituir, mais e mais, correria por sedentarismo. Não deu outra: grande parte de minha vida adulta transformou-se em uma luta insana contra a obesidade.

Foi o preço de minha genética, do acesso fácil, cômodo e tentador à fast (and junk) food e de abandonar a lúdica atividade física. Perdi o prumo e a saúde. Foi nessa época (que felizmente já pertence ao passado) que ouvi horrores sobre “ser gorda”. Muitas pessoas, sem nenhum constrangimento, rotulavam minha vida como preguiçosa, sem força de vontade, indolente. E as piadinhas, os olhares, o desprezo... Ser gorda era ser pária social. (E, cá entre nós, continuo acima do tal “peso ideal”, mas estou saudável, com todas as taxas dentro de padrões de normalidade, e muito feliz, em paz com a balança.) Mas percebo até hoje, e por vezes ainda na própria pele, como os obesos são tratados preconceituosamente. Com certeza, por maldade ou pura ignorância.

Cada vez mais a ciência vem esclarecendo a intrincada rede de causas e efeitos que levam à obesidade, tais como os fatores já bem conhecidos de sedentarismo e má alimentação. São tantas as novidades que, até recentemente, achava-se que o tecido adiposo era tão-somente um depósito de gordura que o corpo acumulava e que poderia usar como reserva energética caso necessitasse. Pois bem: sabe-se hoje que esse tecido é a maior glândula endócrina do organismo. Quem diria? Nossa gordura corporal, que é muito aumentada na obesidade, produz dezenas de hormônios, entre eles a lepitina, o hormônio que reduz o apetite. Li em uma entrevista com o Dr. Bernardo Leo Wajchenberg, renomado endocrinologista, que “quanto mais gordura, maior a produção desse hormônio que age no cérebro e faz diminuir o apetite. O obeso, porém, que tem muita lepitina; desenvolve resistência a ela. Se não fosse assim, ninguém seria gordo.” (É sempre a mesma história... Excesso e escassez só servem pra complicar a vida.)

Mais recentemente, a comunidade científica fez outras descobertas sobre a obesidade: trata-se de uma doença em que estão envolvidos múltiplos genes ― e muito pouco ainda se sabe sobre quais e quantos são e como eles agem ―, além de modificações na flora intestinal, que podem facilitar o ganho de peso. (Agora sim, complicou pra valer...)

A tal parte hereditária eu conheço bem. Se você não é magro e não tem um amigo magro, talvez não saiba o que é isso. Tenho uma amiga assim, uma meiga e doce professora que odeia (e não pratica) atividades físicas. Eu a acompanho há anos e nunca a vi ganhar um graminha de peso. Ela come com o apetite de um peão de obra que carregou cimento o dia todo. E repete o prato, uma, duas vezes. Não dispensa sobremesa, toma cafezinho adoçado com tanto açúcar que causaria coma em diabéticos, faz boquinhas entre as refeições, adora balinhas e salgadinhos e todo tipo de frituras. E é tão magra que chega a preocupar, apesar de ser saudável. Tem um metabolismo fabuloso, que queima praticamente todas as calorias ingeridas, e seus genes são dignos de serem estudados.

Mas, voltando aos pobres mortais que precisam estar atentos ao que comem e a como comem (ou seja, eu), acredito cada vez mais que, uma vez gordo, sempre gordo! Explico: não basta emagrecer; seu cérebro já registrou o peso a que você “pode” chegar. Ou seja, é como no caso de tratamentos a quem já foi drogado. Permanecer magro é a mesma história de "estou abstêmio há x dias." A comparação é forte, mas, no caso, a “droga” é a “comida”.

Vamos por partes. Encontrei um artigo do Dr. Drauzio Varella que explica bem a situação. Selecionei alguns trechos:

“A visão atual compara a neurobiologia da obesidade à da compulsão por drogas, como cocaína ou heroína. Quando a fome aperta, hormônios liberados pelo aparelho digestivo ativam os circuitos cerebrais de recompensa localizados no núcleo estriado. Essa área contém concentrações elevadas de endorfinas, mediadores ligados à sensação de prazer. À medida que o estômago se distende e os alimentos progridem no trato digestivo, há liberação de hormônios que reduzem gradativamente o gosto que a refeição traz, tornando os alimentos menos atraentes. Os hormônios que estimulam ou diminuem o apetite agem por meio do ajuste fino dos prazeres à mesa. Carboidratos e alimentos gordurosos subvertem essa ordem. São capazes de excitar sensorialmente o sistema de recompensa a ponto de deixá-lo mais resistente aos hormônios da saciedade. Esse mecanismo explica por que depois do terceiro prato de feijoada, já com o estômago prestes a explodir, encontramos espaço para a torta de chocolate.”

“Na obesidade, os circuitos de recompensa respondem mal à presença de alimentos no estômago, exigindo quantidades cada vez maiores para disparar a saciedade. Pessoas obesas precisam comer mais para experimentar a mesma sensação de plenitude acessível com quantidades menores às mais magras.”

“Como defende Paul Kenny, do Scripps Research Institute, da Flórida: ‘A obesidade não é causada por falta de força de vontade. Como nas drogas causadoras de dependência, a compulsão pela comida provoca um feedback nos centros cerebrais de recompensa: quanto mais calorias você consome, mais fome sente e maior é a dificuldade para aplacá-la.’ Essa armadilha não lembra, de fato, a que aprisiona dependentes de nicotina, cocaína, álcool ou heroína? O efeito sanfona não é comparável às recaídas dos usuários dessas drogas? Faz sentido: a evolução não criaria um sistema de recompensa para cada forma de compulsão.”

“Durante milhões de anos, a sobrevivência de nossos ancestrais esteve ameaçada pela escassez de alimentos. Como ativar a saciedade era preocupação secundária, a seleção natural privilegiou aqueles dotados de circuitos cerebrais mais eficientes em estimular a fome do que em suprimi-la. Os avanços da culinária, a fartura, a disponibilidade de alimentos industrializados ricos em gorduras e carboidratos, os sucos, refrigerantes, biscoitos e salgadinhos ao alcance das crianças, a cultura de passar horas à mesa e a vida sedentária criaram as condições ambientais para que a epidemia de obesidade se disseminasse.”

E cá estamos, lutando ferrenhamente contra o que nos levou a ter sucesso evolutivo ― comer sempre que pudermos ― em uma batalha em que não há inimigos reais; somente a química de seu próprio corpo.

Por que somos ou não somos obesos? Essa é a questão que um dia eu adoraria responder objetivamente.
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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

“Brazil”. Meu Brasil brasileiro...


Um estrondo abala o edifício e todas as vidraças são estraçalhadas por uma bomba de fabricação caseira. Na TV, o repórter pergunta ao Ministro de Informações:

— O que o senhor acredita que está por trás dessa escalada de verdadeiros ataques terroristas?

— Falta de espírito esportivo — responde o ministro. — Uma insignificante minoria parece ter esquecido certas virtudes dos velhos tempos. Não suportam ver a vitória dos outros. Se essa gente entrasse no jogo, teria uma vida muito melhor.

E o repórter comenta:
— Mas, ministro, dizem que o Ministério de Informações é muito grande e pouco flexível. Informação é o nome do jogo. Não se pode ganhar se for limitado. E o custo de tudo isso é 7% do PIB.

— Entendo a preocupação do contribuinte — o ministro responde. — Ele quer ver seu dinheiro valorizado. Por isso, insistimos no princípio de recuperação de informações. É correto e justo que os considerados culpados paguem por sua detenção e pelos procedimentos usados pelo departamento em seus interrogatórios.

— E o governo está vencendo essa guerra? — questiona o repórter.

— Sim! — diz o ministro. — Nossa moral é alta. Estamos revidando os ataques, eliminando-os totalmente. Eles estão acabados.

E o repórter retruca:
— Mas... são 13 anos de ataques de bombas!

— Sorte de principiantes! — conclui o ministro.

Essa surreal entrevista está nos primeiros minutos de Brazil, uma produção britânica que estreou nos cinemas da Europa em fevereiro de 1985, e que me parece absurdamente atual, por inúmeras razões. Se você (nunca) ouviu falar nesse filme, aqui vão algumas informações:

O diretor, Terry Gilliam, que também assinou o roteiro com Charles McKeown e Tom Stoppard, foi um dos mais ativos integrantes do satírico grupo inglês Monty Python (só para lembrar: “O Sentido da Vida”, “A Vida de Brian”, “Monty Python em A Busca do Cálice Sagrado”). Tendo “Aquarela do Brasil” como tema principal, a trilha sonora explora lindamente, mas quase no limite da exaustão, a composição de Ary Barroso.

[A propósito: o filme original, com opção de legendas em português e duração de duas horas e 16 minutos, está disponível em http://youtu.be/XmSBtDLgBSQ]


Sucesso de crítica na Europa, e fracasso de bilheteria no Brasil, Brazil já foi descrito como um drama, uma grande comédia, uma fantasiosa crítica sobre a sociedade burocratizada, um filme de aventura, ficção científica e uma sátira distópica.

Confirmo todas as descrições, do drama à sátira. Os limites de nonsense são rompidos tantas vezes em Brazil, que o filme acaba por se encaixar, tranquilamente, nas mais diferentes visões. Mas nenhuma é tão perfeita como a antiutopia, por mostrar a vida sob condições de extrema opressão, desespero e privações. É impossível não associar Brazil com outras distopias imortalizadas na literatura por dois escritores ingleses: “Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley (1894-1963), e “1984” de George Orwell (1903-1950). (Este último é o livro em que figura o “personagem” chamado Big Brother, que obviamente não tem nada a ver com a bobagem global do Big Brother Brasil.)

Terry Gilliam (que também dirigiu “Os 12 Macacos”) colocou em Brazil um clima noir em um regime totalitário, tão absurda e violentamente burocrático, que todos, todos mesmo (desde o garçom até o eletricista, o motorista e qualquer outro prestador de serviços, e mesmo o censor e o torturador), vivem soterrados sob papéis, carimbos, recibos e formulários.

O filme tem passagens inesquecíveis, como a de um jantar entre amigas em que os sofisticados pratos são identificados, rigorosamente, por números e são todos idênticos a bolas de sorvete com cores repugnantes. Durante o jantar, um grupo de “terroristas” (contrários ao regime) adentra o restaurante explodindo mesas e machucando pessoas. Toda a cena é então prontamente coberta por coloridos biombos, trazidos por um atarefado maître, enquanto as amigas, alheias a tudo, continuam a conversar animadamente sobre a mais recente técnica de cirurgia plástica facial. Por sinal, o filme é fantástico na representação de alienações. Sonhos, delírios e uma tremenda confusão entre realidade e fantasia são o fio mestre de Brazil.

Pouco se falou sobre a identidade do filme com o verdadeiro país, Brasil. Na época do lançamento, 1985, havia várias correntes, desde a mais pueril, baseada no título e na trilha sonora; passando pelos sarcásticos gozadores, que viam o crescente mercado de cirurgia plástica do país representado no filme pelas hilárias cenas em que poderosas senhoras idosas deformavam seus rostos na busca de uma pele jovem; até a corrente dos céticos (ou seriam realistas?), que viam uma perfeita identidade entre a sátira do filme e a realidade do Brasil, que passara pelo então recente sistema opressor da ditadura militar.

Delações premiadas, documentos que desaparecem no caótico Ministério das Informações... Os heróis, ou anti-heróis, são Sam e Jill no filme, lúcidos e delirantes, mas poderiam ser Venina, Graça... ou quem melhor representasse a realidade do país. Realidade? Faz tempo que não passa nenhum filme sobre isso. Nem me lembro mais...
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FONTE DA IMAGEM: Divulgação do filme Brazil.
 

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