Um estrondo abala o edifício e todas as vidraças
são estraçalhadas por uma bomba de fabricação caseira. Na TV, o repórter
pergunta ao Ministro de Informações:
— O que o senhor acredita que está por trás
dessa escalada de verdadeiros ataques terroristas?
— Falta de espírito esportivo — responde o
ministro. — Uma insignificante minoria parece ter esquecido certas virtudes dos
velhos tempos. Não suportam ver a vitória dos outros. Se essa gente entrasse no
jogo, teria uma vida muito melhor.
E o repórter comenta:
— Mas, ministro, dizem que o Ministério de
Informações é muito grande e pouco flexível. Informação é o nome do jogo. Não
se pode ganhar se for limitado. E o custo de tudo isso é 7% do PIB.
— Entendo a preocupação do contribuinte — o
ministro responde. — Ele quer ver seu dinheiro valorizado. Por isso, insistimos
no princípio de recuperação de informações. É correto e justo que os
considerados culpados paguem por sua detenção e pelos procedimentos usados pelo
departamento em seus interrogatórios.
— E o governo está vencendo essa guerra? —
questiona o repórter.
— Sim! — diz o ministro. — Nossa moral é alta.
Estamos revidando os ataques, eliminando-os totalmente. Eles estão acabados.
E o repórter retruca:
— Mas... são 13 anos de ataques de bombas!
— Sorte de principiantes! — conclui o
ministro.
Essa surreal entrevista está nos primeiros
minutos de Brazil, uma produção
britânica que estreou nos cinemas da Europa em fevereiro de 1985, e que me
parece absurdamente atual, por inúmeras razões. Se você (nunca) ouviu falar
nesse filme, aqui vão algumas informações:
O diretor, Terry Gilliam, que também
assinou o roteiro com Charles McKeown e Tom Stoppard, foi um dos mais ativos
integrantes do satírico grupo inglês Monty
Python (só para lembrar: “O Sentido da Vida”, “A Vida de Brian”, “Monty
Python em A Busca do Cálice Sagrado”). Tendo
“Aquarela do Brasil” como tema principal, a trilha sonora explora lindamente,
mas quase no limite da exaustão, a composição de Ary Barroso.
[A
propósito: o filme original, com opção de legendas em português e duração de
duas horas e 16 minutos, está disponível em http://youtu.be/XmSBtDLgBSQ]
Sucesso de crítica na Europa, e fracasso de bilheteria no Brasil, Brazil já foi descrito como um drama, uma
grande comédia, uma fantasiosa crítica sobre a sociedade burocratizada, um
filme de aventura, ficção científica e uma sátira distópica.
Confirmo todas as descrições, do drama à sátira. Os limites de nonsense são rompidos tantas vezes em Brazil, que o filme acaba por se encaixar,
tranquilamente, nas mais diferentes visões. Mas nenhuma é tão perfeita como a
antiutopia, por mostrar a vida sob condições de extrema opressão, desespero e
privações. É impossível não associar Brazil
com outras distopias imortalizadas na literatura por dois escritores ingleses:
“Admirável Mundo Novo”, de Aldous Huxley (1894-1963), e “1984” de George Orwell
(1903-1950). (Este último é o livro em que figura o “personagem” chamado Big Brother, que obviamente não tem nada
a ver com a bobagem global do Big Brother Brasil.)
Terry Gilliam (que também dirigiu “Os 12 Macacos”) colocou em Brazil um clima noir em um regime totalitário, tão absurda e violentamente
burocrático, que todos, todos mesmo (desde o garçom até o eletricista, o motorista
e qualquer outro prestador de serviços, e mesmo o censor e o torturador), vivem
soterrados sob papéis, carimbos, recibos e formulários.
O filme tem passagens inesquecíveis, como a de um jantar entre amigas em
que os sofisticados pratos são identificados, rigorosamente, por números e são
todos idênticos a bolas de sorvete com cores repugnantes. Durante o jantar, um
grupo de “terroristas” (contrários ao regime) adentra o restaurante explodindo
mesas e machucando pessoas. Toda a cena é então prontamente coberta por
coloridos biombos, trazidos por um atarefado maître, enquanto as amigas, alheias a tudo, continuam a conversar
animadamente sobre a mais recente técnica de cirurgia plástica facial. Por
sinal, o filme é fantástico na representação de alienações. Sonhos, delírios e
uma tremenda confusão entre realidade e fantasia são o fio mestre de Brazil.
Pouco se falou sobre a identidade do filme com o verdadeiro país,
Brasil. Na época do lançamento, 1985, havia várias correntes, desde a mais
pueril, baseada no título e na trilha sonora; passando pelos sarcásticos
gozadores, que viam o crescente mercado de cirurgia plástica do país
representado no filme pelas hilárias cenas em que poderosas senhoras idosas
deformavam seus rostos na busca de uma pele jovem; até a corrente dos céticos (ou
seriam realistas?), que viam uma perfeita identidade entre a sátira do filme e
a realidade do Brasil, que passara pelo então recente sistema opressor da
ditadura militar.
Delações premiadas, documentos que desaparecem no caótico Ministério das
Informações... Os heróis, ou anti-heróis, são Sam e Jill no filme, lúcidos e
delirantes, mas poderiam ser Venina, Graça... ou quem melhor representasse a
realidade do país. Realidade? Faz tempo que não passa nenhum filme sobre isso.
Nem me lembro mais...
______
FONTE DA IMAGEM:
Divulgação do filme Brazil.