sexta-feira, 10 de abril de 2015

Medos e monstros




A noite caía escura como breu. Nada se via no céu, além de algumas minguadas estrelas e uma nesga de luz da lua nova. Fui dormir bem cedo, pouco depois de as galinhas se aquietarem em seus poleiros. Após aquele dia na fazenda ― correndo atrás da bezerrada, pegando laranja no pé e ralando o joelho no centésimo tombo da semana ―, tamanha era minha canseira que cheguei ao quarto e não deitei. Desmaiei.
Acordei no meio da noite, na mais completa escuridão, com respingos de água morna em meu rosto. Fechei os olhos molhados, prendi a respiração, assustada, e fiquei alguns segundos quieta, tentando entender o que estava acontecendo, morrendo de medo de abrir um olho sequer. E a água voltou a respingar sobre mim, escorrendo sobre meus lábios. Um gosto amargo me aterrorizou. Não faço ideia de quanto tempo fiquei ali, sem mexer um músculo, paralisada de pavor. E a água continuava a cair, lentamente. Quanto mais eu pensava, mais medo sentia. Nada, nadinha de nada que eu conhecesse neste mundo podia explicar o que estava acontecendo. Era uma noite fria e aquela “água” era morna. Como era possível? Apurei os ouvidos e constatei que não chovia ― nem uma garoinha sequer. Não era goteira.
Aos poucos, com o corpo inerte e a mente acelerada ao máximo, exausta por respirar tão mal, uma única e aterrorizante verdade se apossava de mim: pendurado no teto de madeira, a pouca distância de meu rosto, um monstro imenso, com boca escancarada, deixava sua baba morna escorrer. Meu estômago ficava embrulhado só de imaginar e meu corpo inteirinho começava a doer. Então tomei a decisão: ele pode me devorar, mas antes eu vou gritar. E gritei: “Paiiêêê!”.
No dia seguinte, o cano de cobre do reservatório de água quente foi consertado. Por sorte, o fogão a lenha tinha sido pouco usado e a água da serpentina não se aquecera demais. Além disso, a noite fria ajudou a tornar apenas morna a água da caixa.
Mas as semanas seguintes foram tensas. Apesar da constatação da realidade, sem monstros visíveis, as noites ainda me perturbavam. Com o tempo, porém, fui me tornando cética. Passei a duvidar de qualquer ameaça estranha e comecei, desafiadoramente, a vasculhar a escuridão e as sombras até iluminá-las. Literalmente, jogar luz sobre o medo! Foi assim que aprendi a destruir os monstros que se atrevessem a aparecer.
Por vezes, em situações tensas, ainda fico paralisada. Mas hoje me controlo mais facilmente e começo a pensar. E o pensamento, tal qual a luz, esclarece!
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Crônica extraída de meu livro “Celebrando dezembro, janeiro, fevereiro...”, Editora Letra Livre, Campo Grande, MS, 2014.

FONTE DA IMAGEM: Foto de minha autoria.


 

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