sábado, 20 de junho de 2015

Por um fio...


O inverno habitualmente me transporta para longe. Viajo no tempo e vivencio memórias que me... deprimem. Nunca entendi direito esse estado de espírito. É como se na ausência de calor o corpo contraído desdobrasse áreas normalmente revolutas, expondo lembranças que se escondem sob o sol de verão. E assim, como que geridas por períodos ciclotímicos, algumas frentes frias desnudam dores e tristezas arquivadas.

A lembrança dele veio com força nesta manhã. Acordei ao som de uma viola de cocho e fui invadida pela imagem de seu rosto de traços fortes. Lembrei-me do dia que lhe perguntei a origem de seu nome artístico e me respondeu: “Juntei o JO, o RA, o PI e o MO das iniciais do meu nome, muito longo para assinar uma tela, e criei o JORAPIMO”.

Esse era o corumbaense José Ramão Pinto de Moraes (1937-2009), por quem nutri forte afeto e admiração desde que o conheci no final dos anos 70, “ocupando uma cela” na desativada cadeia pública que, reformada, passou a abrigar a Casa do Artesão em Corumbá. E Jorapimo manteve um ateliê por lá. Devidamente pinçada pela força e beleza de sua pintura focada no universo pantaneiro, tornei-me sua colecionadora (modesta, mas fiel). A paixão pelo Pantanal nos aproximou. Fiquei conhecendo seus projetos de educar crianças pela arte e pela ecologia — o “Arte na Praça” em Corumbá e as elaboradas tirinhas para jornais, estas com personagens defensores do meio ambiente: Evinha, uma cobra e um menino ribeirinho. Muitos sonhos. Alguns materializados, outros não a tempo.

Jorapimo tinha orgulho de sua obra e vivia dela. Neste país nem é necessário dizer quão difícil foi viver assim. Acometido de grave insuficiência renal, passou seus últimos anos deprimido pelas dificuldades físicas e financeiras para continuar pintando. A última tela que me entregou, com meu nome escrito no verso, me cortou o coração: nela um violeiro tomava forma com muitas cores, em um evidente aproveitamento de restos de tintas, com uma viola de cocho de uma corda. Brinquei: “Que violeiro é esse que toca com uma corda só?”. Ele de pronto respondeu: “É uma corda verde. Minha esperança de melhora.” Mas a melhora não veio e o final de sua vida foi por demais dolorido. E nem me refiro à dor física, mas àquela de quem passa pela degradante peregrinação de usuário do sistema de saúde pública.

Hoje sua imagem ficou comigo, ao longo do dia, mesmo quando o frio arrefeceu e o sol ficou forte. Percebi que muitas coisas, próximas e distantes de mim, estão cada vez mais sem esperanças.

A noite caiu e senti a presença de um fio. Um único e tênue fio de esperança.


FONTE DA IMAGEM: A tela de Jorapimo!
 

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