O inverno habitualmente me transporta
para longe. Viajo no tempo e vivencio memórias que me... deprimem. Nunca
entendi direito esse estado de espírito. É como se na ausência de calor o corpo
contraído desdobrasse áreas normalmente revolutas, expondo lembranças que se
escondem sob o sol de verão. E assim, como que geridas por períodos
ciclotímicos, algumas frentes frias desnudam dores e tristezas arquivadas.
A lembrança dele veio com força nesta
manhã. Acordei ao som de uma viola de cocho e fui invadida pela imagem de seu
rosto de traços fortes. Lembrei-me do dia que lhe perguntei a origem de seu
nome artístico e me respondeu: “Juntei o JO, o RA, o PI e o MO das iniciais do meu
nome, muito longo para assinar uma tela, e criei o JORAPIMO”.
Esse era o corumbaense José Ramão Pinto
de Moraes (1937-2009), por quem nutri forte afeto e admiração desde que o
conheci no final dos anos 70, “ocupando uma cela” na desativada cadeia pública que,
reformada, passou a abrigar a Casa do Artesão em Corumbá. E Jorapimo
manteve um ateliê por lá. Devidamente pinçada pela força e beleza de sua
pintura focada no universo pantaneiro, tornei-me sua colecionadora (modesta,
mas fiel). A paixão pelo Pantanal nos aproximou. Fiquei conhecendo seus
projetos de educar crianças pela arte e pela ecologia — o “Arte na Praça” em
Corumbá e as elaboradas tirinhas para jornais, estas com personagens defensores
do meio ambiente: Evinha, uma cobra e um menino ribeirinho. Muitos sonhos.
Alguns materializados, outros não a tempo.
Jorapimo tinha orgulho de sua obra e
vivia dela. Neste país nem é necessário dizer quão difícil foi viver assim.
Acometido de grave insuficiência renal, passou seus últimos anos deprimido
pelas dificuldades físicas e financeiras para continuar pintando. A última tela
que me entregou, com meu nome escrito no verso, me cortou o coração: nela um
violeiro tomava forma com muitas cores, em um evidente aproveitamento de restos
de tintas, com uma viola de cocho de uma corda. Brinquei: “Que violeiro é esse
que toca com uma corda só?”. Ele de pronto respondeu: “É uma corda verde. Minha
esperança de melhora.” Mas a melhora não veio e o final de sua vida foi por
demais dolorido. E nem me refiro à dor física, mas àquela de quem passa pela
degradante peregrinação de usuário do sistema de saúde pública.
Hoje sua imagem ficou comigo, ao longo
do dia, mesmo quando o frio arrefeceu e o sol ficou forte. Percebi que muitas
coisas, próximas e distantes de mim, estão cada vez mais sem esperanças.
A noite caiu e senti a presença de um
fio. Um único e tênue fio de esperança.
FONTE DA IMAGEM: A tela de Jorapimo!